A eclosão da guerra na Ucrânia pelas forças russas causou um isolamento sem precedentes da Rússia no cenário internacional, afetando, inclusive, o meio cultural. Com uma série de cancelamentos de personalidades ligadas à cultura russa, cresce o debate sobre os riscos de uma russofobia em ascensão no mundo. Por outro lado, especialistas avaliam que boicotes são efeito circunscrito pela guerra e não devem alterar relação do mundo com a cultura do país.
É inevitável que uma guerra de tamanha proporção, com mais de 40 dias de combates sem um cessar-fogo no horizonte próximo, com mortes de civis, bombardeios de cidades, milhões de refugiados, leve a uma polarização e uma intensificação das posições sobre o conflito. E a Rússia, no papel de quem invadiu o país vizinho e iniciou a guerra, tendo ignorada suas justificativas de expansão da Otan, imediatamente foi condenada a um isolamento sem precedentes pela comunidade internacional. Da mesma forma, é natural que a sociedade questione quais são as posições de figuras públicas sobre o conflito e que lado pessoas influentes na sociedade assumem em suas avaliações sobre as causas da crise que se instaurou no Leste europeu.
Junto com as imediatas sanções da comunidade internacional a diversos setores da economia russa após a intervenção de Moscou na Ucrânia, o meio artístico e cultural também foi afetado, gerando um questionamento sobre os limites das condenações à Rússia.
Nesta semana, um dos mais proeminentes escritores russos vivos, Boris Akunin, reagiu ao anúncio do célebre escritor Stephen King de suspender a publicação de seus livros na Federação Russa. Voz ativa contra o governo do presidente Vladimir Putin e contra a guerra na Ucrânia, Akunin escreveu em seu canal do Telegram que é categoricamente contra o boicote ao mercado russo de livros. Segundo ele, o boicote só fortalece a ditadura de Putin e sua propaganda, criando “entre os russos a sensação de que o mundo inteiro está contra eles”.
Putin, ao denunciar que a reação do Ocidente à operação militar na Ucrânia teria como pano de fundo uma crescente russofobia, declarou em 25 de março que a cultura de cancelamento sobre tudo que é associado à Rússia hoje estaria se transformando em um "cancelamento da cultura" russa.
“Hoje eles estão tentando cancelar um país de mil anos, [cancelar] nosso povo - estou falando sobre a discriminação progressiva de tudo relacionado à Rússia, sobre essa tendência que está se desenrolando em vários Estados ocidentais”, afirmou Putin em reunião com figuras do meio cultural.
:: Os russos apoiam a guerra contra a Ucrânia? ::
O jornalista e crítico de cinema russo, Anton Dolin, em entrevista ao Brasil de Fato, afirmou que para analisar a relação do mundo com a cultura russa hoje é necessário separar, de um lado, os contextos da tragédia humanitária provocada pela invasão russa e, de outro, o cenário fora da guerra.
De acordo com ele, o fluxo de milhões de refugiados ucranianos que ficaram sem casa e se encontram em países vizinhos ou em ex-repúblicas soviéticas, por exemplo, faz com que haja uma acentuada sensação de “perigo e ameaça da Rússia”.
“Todos os sentimentos estão intensificados. E é óbvio que, como praticamente ninguém pode afetar diretamente Putin e seus ministros ou soldados, tudo que é russo começa a ficar sob ameaça. Alguém pode incorrer em ofensas nas ruas ou em cafés por que alguém está falando em russo. Ou então podem cancelar concertos ou espetáculos em um lugar. Enquanto houver guerra, infelizmente estes tipos de excessos irão acontecer”, observa.
Por outro lado, ao comentar a perspectiva global da relação do mundo com a cultura russa, Dolin, que atuava como editor-chefe revista de cinema “Iskusstvo Kino” - antes de sair da Rússia após o começo da guerra -, destacou que, em um cenário mais amplo, a conexão do mundo com a arte russa não mudará.
“Cortar globalmente da cultura mundial Tchekhov, Tchaikovsky, Dostoievsky, Stravinsky, Mussorgsky, Kandinsky e Malevich é simplesmente impossível. Não importa o quanto se tente ficar sem eles, não será possível amarrá-los à vilania de Putin”, aponta Dolin.
Ele afirmou que também devia ser “psicologicamente desconfortável pronunciar versos de Goethe ou Schiller durante a invasão de Hitler na URSS, na Rússia”. “Mas a guerra acabou e até onde eu sei não se levantou nenhuma questão contra Goethe ou Schiller, ou até mesmo Wagner em nenhum lugar que não seja Israel, e até mesmo em Israel permanentemente acontecem debates, e não há nenhuma proibição oficial”, acrescenta.
Já o reitor do Instituto Russo de Artes Cênicas (GITIS), Grigory Zaslavskii, afirma ao Brasil de Fato que é evidente o crescimento de uma russofobia no mundo e já haveria um sentimento anti-russo enraizado no Ocidente antes da guerra. De acordo com ele, a eclosão da operação militar russa na Ucrânia teria sido um estopim para naturalizar este sentimento.
“O que mais me desconforta nisso é a prontidão de todo o mundo de se jogar nessa russofobia. Ou seja, o mundo estava pronto para começar a falar sobre isso. Novamente isso pode ser comparado com o antissemitismo, que infelizmente vive em muitas pessoas, mas por vezes é encoberto, contrariando posições civilizadas. Mas assim que isso se torna possível, isso é apoiado por cima, o antissemitismo, como em qualquer agressão, ganha vida nas pessoas”, afirma.
Grigory Zaslavksii chegou a defender o reconhecimento das autodeclaradas repúblicas populares de Donetsk e Lugansk por parte do presidente russo. No entanto, ele afirma que, mesmo Putin tendo certos argumentos razoáveis nas justificativas para o conflito, o sofrimento humano causado pela guerra é uma tragédia.
“Para mim, a Ucrânia é tanto a minha pátria como a Rússia. Eu servi no exército lá, meus avós moraram lá [...] Para mim a mais difícil e quase inconcebível contradição psicológica é de que a minha pátria atacou a minha pátria”, destaca.
Ao comentar as perspectivas para a relação do mundo com a cultura russa, o reitor do Instituto Russo de Artes Cênicas foi categórico ao dizer que é impossível simplesmente cancelar obras que já têm o seu lugar nas mentes das pessoas.
“Não é possível desligar das nossas mentes a música de Tchaikovsky, assim como a música de Wagner. A mesma coisa com a literatura, de qualquer jeito nós vivemos no contexto dos heróis de Dostoievski, Tchekhov, assim como de Kafka, Cervantes, Thomas Mann, e isso não depende de nenhuma forma de quais situações hoje se encontra o povo dessa cultura”, completa.
O ataque de boicote aos russos
Outros notórios exemplos de boicotes ligados à cultura russa foram casos como a demissão da cantora de ópera Anna Netrebko, do Metropolitan Opera de Nova York, e do maestro russo Valery Gergiev, da Filarmônica de Munique.
Para o crítico Anton Dolin, casos de sanção como o do maestro e diretor-geral do Teatro Mariinsky (São Petersburgo), Valery Gergiev, possuem um caráter que não diz tanto respeito ao âmbito cultural, representando um outro aspecto em relação ao cancelamento de artistas russos. Aqui trata-se de artistas que apoiaram diretamente o presidente Vladimir Putin, criando uma relação de cumplicidade com o governo que promoveu a guerra na Ucrânia.
“Acontece a anexação da Crimeia, Gergiev assina uma carta dizendo que a anexação da Crimeia é uma coisa boa. E depois Putin concorre às eleições presidenciais e Gergiev torna-se uma figura de confiança, e o ajuda a vencer as eleições. Isso é uma atividade concretamente política. Isso vai além da atividade de um maestro, não é verdade? Mas junto com isso, ele continua a reger e dirigir um dos principais teatros da Rússia. Se ele não fosse um dos mais importantes maestros, seu apoio não teria valor nenhum, são coisas interligadas, não podemos separá-las”, argumenta.
De acordo com Dolin, ninguém contesta o fato de que Gergiev é um dos mais importantes músicos e maestros do país. A questão, segundo ele, é ‘tirar da esfera pública uma pessoa que tem a reputação manchada, e isso é bem compreensível”.
Por outro lado, o crítico de cinema considera que o estudo e a pesquisa da cultura russa na Ucrânia ainda será problemática por muitos anos, mas isso não significa que ela será descartada para sempre. “Isso não é nenhuma cultura do cancelamento, isso é uma consequência natural da guerra”, completa.
Edição: Thales Schmidt