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Artigo | Em SP, zeladoria na Princesa Isabel tira pertences, descumpre decreto e enxuga gelo

Ações da Prefeitura não tiram a pessoa da rua, não ofertam alternativas de geração de renda e não garantem acolhida

Brasil de Fato - São Paulo |
Ações desastrosas do poder público marcam os últimos anos na chamada "Cracolândia" - Rovena Rosa/Agência Brasil

Já era de se esperar que a Prefeitura de São Paulo realizaria uma ação de zeladoria urbana na praça Princesa Isabel, região central da cidade, exatamente como aconteceu nesta última segunda-feira (04). Depois da mudança de parte do fluxo para o local, dava para presumir que a Prefeitura tentaria desarticular a cena de uso que se instalou lá. Infelizmente, tampouco é surpresa que nenhuma alternativa social efetiva para as pessoas que vivem na praça acompanha a ação em curso.

A nota oficial da Prefeitura informa que foram realizadas centenas de abordagens e encaminhamentos, mas lá no território esse suposto suporte não é observado. As ações da Prefeitura não tiram a pessoa da rua, não ofertam alternativas de geração de renda, não garantem um local de acolhida que gere adesão, e, portanto, não reduzem os diversos fatores de vulnerabilidade a que essas pessoas estão submetidas. Na prática, esses números não significam atendimento efetivo capaz de atender às necessidades daquela população. As pessoas continuam lá, assim como continuam intocados os fatores que as fazem estar lá.

Há ainda outra informação que os números da Prefeitura ocultam. Grande parte das pessoas que já moravam na Praça antes da migração do fluxo foi levada para lá pelo próprio poder público. O processo de ocupação da Princesa Isabel se intensificou após o fechamento do Atende 2, um serviço da assistência social que ficava no território. A estratégia dessa gestão é oferecer equipamentos que tirem da região as pessoas em situação de rua, especialmente as que fazem uso problemático de drogas.

Sob a justificativa de que há serviços em melhores condições em outros territórios, formas de atendimento voltadas à população são encerradas na região sem a pactuação necessária com essas pessoas. O que sobra, portanto, é um território com muita gente, mas com poucos serviços e sem alternativas qualificadas.

Você acha mesmo que tirar um documento vai resolver a situação das pessoas que viviam na praça? Ou ainda, uma vaga de pernoite em Centro de Acolhida vai dar conta de reorganizar a vida da pessoa a ponto de fazê-la conseguir arrumar um emprego? Ao invés de promover, a Prefeitura tem trabalhado para romper vínculos sociais, afetivos, familiares e profissionais dessas pessoas.

Desde que começou esse novo momento da Prefeitura em relação à Cracolândia, as respostas dadas são sempre simplistas, focando exclusivamente em intervenções urbanas e na repressão. Em um lugar complexo, a qualidade das ofertas é mais importante do que a quantidade de abordagens.

Além disso, na ação realizada pela Prefeitura na praça, o decreto que regulamenta a realização de zeladoria urbana foi sistematicamente desrespeitado. No decreto, é vedada a retirada de bens pessoais - tais como documentos de qualquer natureza, medicamentos, malas, mochilas, roupas, sapatos, utensílios de cozinhar e comer, alimentos, travesseiros, cobertores, lençóis – assim como instrumentos de trabalho. Relatos de pessoas em situação de rua da praça informam que muitos desses pertences foram levados, sem qualquer diálogo ou espaço para negociação. Ademais, também desrespeitando o disposto no decreto, não foi oferecido qualquer documento ou instrumento (contralacre) para que as pessoas pudessem depois retirar seus pertences.

Além de desrespeitar o disposto no decreto de zeladoria urbana, tanto a Política Municipal de Álcool e Outras Drogas quanto a Política Municipal para a População em Situação de Rua seguem sendo ignoradas pela Prefeitura. Esta última lei, mesmo após dois anos de entrada em vigor, sequer foi regulamentada. Se há políticas públicas aprovadas em lei e elas não são implementadas na principal cena de uso urbana, algo está errado.

Para agravar ainda mais o cenário de desatenção do poder público, o Auxílio Brasil, programa de transferência de renda vigente no país, não tem chegado a essas pessoas. Somente com a instituição de uma Renda Básica de Cidadania, já aprovada em lei, será possível reduzir cenários de vulnerabilidade como o que vemos na região. Além do Auxílio Brasil se afastar da efetivação de uma Renda Básica no país, seu alcance tem sido cada vez mais limitado. Não articular a inserção das pessoas em situação de rua que vivem na praça no Auxílio Brasil também é uma forma de manter essas pessoas na vulnerabilidade.

Ainda que os recursos de monitoramento e abordagem na região tenham sido atualizados, e que a narrativa tenha sido aprimorada, a receita da Prefeitura segue sendo a mesma de décadas atrás: por meio de uma relação de violência, tirar a base e fragilizar as relações das pessoas em situação de rua. Levar uma pessoa de um lugar para outro e tirar o pouco de estabilidade com que podem contar pode até garantir que não haja uma cena tão grande de uso, mas está longe de atacar e resolver as causas dessa situação.

* Eduardo Suplicy é vereador da cidade de São Paulo pelo PT. Foi deputado estadual, deputado federal e senador.
** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Felipe Mendes