O conflito que hoje se passa na Ucrânia lança luz sobre um tema nem sempre devidamente explorado nas manchetes: a situação e os direitos de refugiados de guerra. O número de pessoas nessa situação que partiram do país do Leste Europeu, por exemplo, já ultrapassa a casa dos 2 milhões. O dado é da Agência da ONU para Refugiados (Acnur).
Após quase 20 dias de combate, chama a atenção o fluxo de mulheres, crianças, idosos, entre outros que, diante do caos gerado pela invasão russa, foram impelidos a buscar abrigo em outras nações. Mas como acolher essa população? Quais medidas devem ser adotadas emergencialmente como parâmetro de proteção dos seus direitos básicos?
O Brasil de Fato conversou sobre o assunto com o porta-voz da Acnur no Brasil, Luiz Fernando Godinho, que iluminou o tema de como devem funcionar as respostas humanitárias a esse tipo de situação. Ele também realçou o papel da solidariedade no processo de acolhida de refugiados.
“Atualmente se discute muito o papel importante que joga a própria sociedade, não só o setor privado, a academia, a sociedade civil organizada, mas nós como indivíduos, que devemos ter a responsabilidade de acolher essas pessoas e dar a elas a chance de recomeçar”, sustenta Godinho.
Confira a seguir a entrevista na íntegra.
Brasil de Fato: O mundo assiste estarrecido a esse conflito na Ucrânia, com muitas violações de direitos, mas a gente também vê ou já viu outras zonas em guerra que registraram grandes violações, inclusive com certa invisibilização das populações que estão fora dos limites da Europa. É o que se passa, por exemplo, no Afeganistão, que tem uma das piores crises humanitárias do mundo, com 55% da população precisando de assistência humanitária e também na Etiópia, na África. A Acnur tem tentado levantar U$ 205 milhões para assistir um contingente de 1,6 milhão de pessoas afetadas pelo conflito que se passa no norte da Ucrânia. Quais as primeiras necessidades quando se precisa gerir uma situação como essa? Onde esse dinheiro deve ser investido exatamente?
Luiz Fernando Godinho: Essa resposta pode variar entre uma operação de emergência ou outra, mas, pelo que a gente tem visto e pela nossa experiência, obviamente as ações para assegurar a vida das pessoas são aqueles necessárias no curtíssimo prazo.
Então, estamos falando, por exemplo, de saúde, abrigamento, alimentação. São essas três as mais urgentes na hora em que se inicia uma resposta humanitária.
O que vem em segundo plano?
À medida que a situação de uma emergência humanitária vai se prolongando, outras questões vão surgindo. Isso, obviamente, vai depender do contexto em que a crise humanitária se dá e do contexto das pessoas com necessidade de proteção.
Mas, em linhas gerais, a gente pode prever algumas questões que são consideradas em respostas como essa, como segurança alimentar, saúde mental, assistência psicossocial para aquelas pessoas que são vítimas de violência durante o seu trajeto de deslocamento forçado, proteção específica para as crianças, questões relacionadas à violência de gênero.
Muitas dessas pessoas às vezes necessitam de recursos financeiros para se manterem em um período inicial, especialmente aquelas que estão fora dos abrigos. E há também uma necessidade de produtos e itens de resposta humanitária que muitas vezes a gente acha que são coisas muito cotidianas, mas, para pessoas que estão numa situação como essa, são extremamente necessárias.
Estou falando de colchões, cobertores, itens de higiene, casacos para o inverno. São itens que a gente acha que as pessoas não precisam, mas, em uma situação de deslocamento forçado, elas muitas vezes saem de casa com a roupa do corpo e precisam desse tipo de apoio também.
Enfim, uma resposta humanitária é algo bastante complexo, com muitas variáveis e, como eu disse, vai depender muito do contexto em que ela se dá e do perfil da população que é assistida.
Que grupos sociais costumam ser mais vulneráveis a essas violações?
Crianças e mulheres são naturalmente mais vulneráveis porque já têm uma vulnerabilidade própria, pelo fato de serem mulheres e crianças. Então, numa situação como essa de ações militares, conflitos e em um processo de deslocamento, elas se tornam alvos de violência sexual, abuso, tráfico de menores, recrutamento forçado – geralmente, isso atinge muitas adolescentes.
Mas a gente tem também, no Acnur, uma abordagem que busca identificar diferentes vulnerabilidades. Você começa a analisar melhor a população e vai entender que existem ali grupos de pessoas LGBTQI+, você vai ver pessoas com deficiências e necessidades especiais com algum tipo de locomoção, dificuldade visual, você vai ter idosos.
Então, a partir do momento em que essa operação vai se desenrolando, os trabalhadores humanitários são capazes de identificar esses grupos e entender as necessidades específicas de cada um. Mas, claro, mulheres e crianças acabam sendo as vítimas que precisam de uma atenção mais urgente.
Quando se veem os conflitos que se dão pelo mundo, tem-se a impressão de que essas violações de direito são um desafio aparentemente mais concentrado nos países que vivem diretamente as guerras e os conflitos desse porte. Mas os países vizinhos, as zonas adjacentes, que acabam recebendo refugiados, também têm que administrar os desafios que as guerras causam em termos de desrespeito a direitos humanos básicos. Que tipo de coisa cabe a esses países para que sejam nações acolhedoras?
Os países, principalmente os signatários da Convenção da ONU [Organização das Nações Unidas] de 1951, que trata do tema dos refugiados, têm as suas responsabilidades uma vez que se tornam signatários. E elas têm a ver com assegurar o acesso dessas pessoas aos seus direitos humanos, então, temos uma série de questões que estão listadas ali na carta de direitos humanos que os países precisam observar em relação aos refugiados que acolhem.
É uma responsabilidade dos países de assegurar, por exemplo, que as pessoas tenham acesso a saúde, educação, alimentação, residência básica. É claro que cada país vai ter a sua própria capacidade pra lidar com essa questão e assegurar o direito das pessoas.
O Acnur, assim como outras agências humanitárias, atua exatamente no sentido de fortalecer essa resposta dada pelos países. E atualmente a gente tem discutido muito também o papel importante que joga a própria sociedade, não só o setor privado, a academia, a sociedade civil organizada, mas nós como indivíduos, que devemos ter a responsabilidade de acolher essas pessoas e dar a elas a chance de recomeçar, ou seja, esse acesso aos direitos se dá de diferentes formas.
Às vezes se dá diretamente, assegurando que essas pessoas possam ter acesso a serviços públicos, mas também esse acolhimento que nós cidadãos podemos dar no bojo da sociedade na qual nós vivemos.
O combate à xenofobia também está entre esses desafios? O número de pessoas refugiadas na Europa pode chegar a 4 milhões, e esta pode se tornar a maior crise de refugiados do continente neste século.
É, só desta crise que a gente está vendo na Ucrânia esse número pode chegar a 4 milhões.
Isso não é pouca coisa...
Não, de maneira alguma. É talvez o maior movimento de pessoas refugiadas na Europa desde a Segunda Guerra Mundial. E essa questão da xenofobia, da discriminação também é muito importante.
O Acnur tem, pública e reiteradamente, condenado todo e qualquer tipo de racismo ou discriminação em relação a todas as pessoas refugiadas, não apenas nesta crise da Ucrânia, mas também em outras crises humanitárias nas quais a gente atua e nos países que acolhem essas pessoas, mesmo que não seja numa situação de crise humanitária, que seja numa situação de médio e longo prazos.
A gente entende que ações de xenofobia e racismo vulnerabilizam mais ainda as pessoas, comprometem a proteção delas e, muitas vezes, podem comprometer a própria vida dessas pessoas. Então, a gente tem trabalhado incessantemente pra reduzir essas atitudes xenofóbicas e essa discriminação.
Uma das maneiras de se fazer isso é exatamente, quando a gente faz os nossos planos, pensar em beneficiar também as comunidades que acolhem essas pessoas. Então, se você tem, por exemplo, um projeto de educação para pessoas refugiadas, você tem que buscar fazer com que esse projeto beneficie também as crianças daquela comunidade em que os refugiados se encontram.
Se você vai melhorar as condições de um espaço em que os refugiados podem praticar esportes, é importante que aquele espaço renovado também beneficie a comunidade acolhida.
Então, são ações como essa que a gente entende que vão reduzindo essas atitudes intolerantes por parte da comunidade e fazendo com que as pessoas entendam que aquilo ali pode também ser benéfico pra elas, que aquela resposta comunitária também pode beneficiar a comunidade.
E é claro que também existem campanhas, existe um diálogo muito constante com os meios de comunicação, com as lideranças comunitárias, as lideranças políticas pra explicar e fazer com que essas pessoas entendam que os refugiados são pessoas forçadas a deixar seus países e precisam dessa chance pra recomeçar.
Elas não vieram até o nosso país ou qualquer outro porque tomaram essa decisão ou porque resolveram migrar pra procurar um emprego. Elas foram forçadas a deixar o país e precisam de uma solidariedade pra começar a reconstruir a vida delas.
Essa realidade também se expressa em países como o Brasil. Pessoas que migraram da Venezuela e que hoje estão em território brasileiro, por exemplo, vivem dificuldades semelhantes. Inclusive, o número de refugiados venezuelanos já chegou à marca dos 6 milhões no planeta e esse movimento consagra o que se entende hoje como a segunda maior crise de deslocamento humano no mundo, com essas pessoas sendo recebidas em países da América Latina, do Caribe. O Brasil figura em quinto lugar como destino dos venezuelanos. Que desafios temos atualmente em relação a esse público em particular?
Conectando com o que a gente abordou, acho que o primeiro desafio hoje na resposta que é dada aos imigrantes que chegam da Venezuela é exatamente o que a gente chama de ações essenciais.
Ou seja, as pessoas precisam ser acolhidas, as mais vulneráveis são abrigadas, recebem atendimento de saúde, alimentação, um teto pra que possam ficar ali temporariamente. Isso eu estou falando das pessoas mais vulneráveis porque muitas delas acabam cruzando a fronteira e têm meios de prosseguir na sua jornada.
Mas muitas chegam com grandes necessidades humanitárias, e essa é a primeira resposta que é dada: um colhimento ainda na fronteira, atendimento de saúde, abrigamento e, consequentemente, alimentação pra essas pessoas.
No médio e longo prazos, a gente trabalha mais na integração dessas pessoas no país. São várias ferramentas e programas dedicados a fazer com que essas pessoas, após esse primeiro momento mais emergencial em que o importante é assegurar que as vidas sejam salvas, possam depois partir pra um processo de integração que vai envolver maior capacitação pra entrar no mercado de trabalho, reconhecimento de diplomas, educação para crianças, escolas para que elas possam retomar esse processo de aprendizado.
Os pais, muitas vezes, passam por cursos de capacitação para ingressar no mercado de trabalho e tudo isso, obviamente, com a devida documentação porque, pra gente, às vezes parece simples ter uma carteira de identidade, de trabalho, mas, pra uma pessoa refugiada, isso não é tão natural.
Ela precisa se inserir integralmente na sociedade do ponto de vista econômico. Então, de novo, são ações que vão sendo modeladas de acordo com o andamento daquela situação específica e com as demandas que são apresentadas pela própria população refugiada.
Edição: Thales Schmidt