POVO MARUBO

Morte de anciãos por covid-19 ameaça patrimônio cultural de indígenas na Amazônia

Com povos isolados, o Vale do Javari é uma das terras mais vulneráveis à pandemia e sofre com atraso na vacinação

Brasil de Fato | Lábrea (AM) |

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Comunidade Maronal, na terra indígena Vale do Javari, na região oeste do estado do Amazonas - Acervo pessoal

De novembro de 2021 para cá, o povo Marubo – no oeste do Amazonas – perdeu três de suas 15 lideranças mais velhas e experientes. As mortes são de pacientes com suspeita de covid-19, segundo a Associação de Desenvolvimento Comunitário do Povo Marubo do alto rio Curuçá (Asdec).

O presidente da Adesc, Manoel Barbosa da Silva, afirmou ao Brasil de Fato que o clima é de luto e de preocupação na aldeia Maronal, localizada na terra indígena Vale do Javari, onde viviam os anciãos vítimas da covid-19. Na avaliação dele, uma das perdas irreparáveis é a do ancião Alfredo Marubo, principal líder da comunidade.

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“Junto com eles [os anciãos], vão os conhecimentos, as nossas práticas culturais. E principalmente da parte do trabalho em saúde que Alfredo liderava, fazendo sessão de xamanismo. São os nossos principais curadores. Então são universos de conhecimento que a gente perde”, considera Silva. 

O órgão responsável por executar a política de saúde indígena na região é o Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Vale do Javari, ligado à Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde. 

“Quanto a uma atenção especial que deveria ter por parte do distrito de saúde, não está tendo. A gente fica apavorado com essa situação. O estado de comoção da aldeia, infelizmente, é intenso”, diz a liderança. 


Alfredo e Fernanda Marubo morreram vítimas de covid-19, diz liderança / Acervo pessoal

Omissão do Estado 

O presidente da Adesc diz que demandou, ainda em julho do ano passado, apoio ao DSEI local. No dia 3 de janeiro, foi informado que uma equipe médica iria até a aldeia, o que ainda não aconteceu. A Fundação Nacional do Índio (Funai) também foi acionada, mas, segundo Manoel, não respondeu. 

Na esperança de sensibilizar a opinião pública, a Associação que representa os indígenas da comunidade Maronal escreveu uma carta aberta.

“Tornamos conhecimento ao público sobre a situação desastrosa que acomete nossos idosos que se despedem com seus conhecimentos tradicionais, causando um verdadeiro abalo, como se fosse numa época em que não havia responsabilidade do Estado sobre o povo”, diz um trecho do documento. 

O presidente da Adesc afirma, ainda, que a vacinação contra o coronavírus está atrasada na aldeia. Ele não tem dados sobre a aplicação de doses, mas afirmou que “ainda não fizeram a terceira dose de reforço e nem começaram a vacinar as crianças”.

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Alta vulnerabilidade

“O desaparecimento dos mais velhos pode implicar consequências irreversíveis para o patrimônio cultural dos povos do Javari”, afirma uma nota técnica elaborada por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e do Instituto Socioambiental (ISA). 

Segundo o estudo, a terra indígena Vale do Javari é a quarta mais vulnerável ao coronavírus no país. O ranking foi feito com base em dados de vulnerabilidade social, disponibilidade de leitos hospitalares, perfil etário da população e números de casos e óbitos. 

“Essa ameaça ainda é reforçada pela presença constante de missionários evangélicos que, mesmo em tempos de pandemia, não abandonam o assédio às comunidades locais. Além de representarem uma ameaça à integridade cultural, podem ser vetores de transmissão da covid-19 a comunidades que têm como única defesa seu isolamento geográfico”, continua a nota técnica.

O Vale do Javari é lar do maior número de indígenas isolados do planeta. Esses grupos optaram por não manter contato regular ou significativo com a sociedade dos colonizadores. Por isso, possuem sistema imunológico mais suscetível a doenças infectocontagiosas. 

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Vacinação atrasada

Até a última atualização do Ministério da Saúde, feita em 30 de janeiro, a dose de reforço havia sido aplicada a 13% da população vacinável (maior de 5 anos) na terra indígena Vale do Javari. Na mesma data, o índice era de 22% em toda a população brasileira. 

Nenhuma criança de até 11 anos havia sido imunizada, cenário que se repete entre 25 dos 34 distritos de saúde indígena espalhados pelo país. Já entre os adolescentes, o cenário é ainda pior. O DSEI Vale do Javari é o único do Brasil que não havia vacinado nenhuma pessoa entre 12 e 17 anos. 

Com mais de 6,3 mil habitantes pertencentes a 26 povos, a terra indígena Vale do Javari tem três mortes por coronavírus contabilizadas pelo Ministério da Saúde. Em todo o Brasil, o número oficial de mortes de indígenas por coronavírus é de 879. O número é contestado pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), que aponta 1.275 óbitos. 

“Chamamos atenção para o fato de a Sesai ser um dos principais vetores de expansão da doença dentro dos territórios indígenas, alcançando a região com maior número de povos isolados do mundo: o Vale do Javari”, escreveu a Apib no site que exibe boletins diários da covid-19. 

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Bolsonaro é acusado de genocídio 

Em agosto do ano passado, o governo de Jair Bolsonaro (PL) foi acusado de genocídio de povos indígenas no Tribunal Penal Internacional (TPI), órgão de Justiça das Nações Unidas (ONU). Foi a primeira vez que advogados indígenas foram diretamente a Haia demandar que um presidente seja investigado. 

As acusações são de crime contra a humanidade, que consiste em “extermínio, perseguição e outros atos desumanos”, e de “causar severos danos físicos e mentais e deliberadamente infligir condições com vistas à destruição dos povos indígenas”, ato classificado como genocídio.

O exemplo de omissão mais recente é a criação tardia do Comitê Gestor dos Planos de Enfrentamento da covid-19 para os Povos Indígenas, colocado em prática por um decreto presidencial em janeiro, quase dois anos após o início da pandemia.  

“O desmantelamento das estruturas públicas de proteção socioambiental e aos povos indígenas desencadeou invasões nas Terras Indígenas, desmatamento e incêndios nos biomas brasileiros, aumento do garimpo e da mineração nos territórios”, afirma o comunicado protocolado pela Apib no Tribunal de Haia. 

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Outro lado

Procurada pela reportagem, a Funai afirmou que atribuição por ações na área da saúde indígena é da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai). A Sesai, por sua vez, enviou uma nota dois dias após a publicação da reportagem. Confira a seguir o posicionamento na íntegra.

"A Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI, do Ministério da Saúde, por meio do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) Vale do Javari informa que, até 19 de fevereiro, os índices da vacinação contra a Covid-19 em pessoas acima de 18 anos são: 87% (D1), 81% (D2) e 22% (D3).

O DSEI Vale do Javari é responsável pela atenção básica à saúde da população indígena aldeada. Desde quando a pandemia foi declarada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), os profissionais do distrito têm trabalhado para evitar o avanço da Covid-19 no território indígena. Isso incluiu as recomendações para que fossem evitados os rituais, festejos e até circulação de pessoas que não vivem nas aldeias. Foram distribuídos álcool em gel e máscaras de proteção individual para todos.

Mesmo antes da chegada da vacina – liberada como prioridade para os indígenas, pelo governo federal, no dia 18 de janeiro de 2020 -   as Equipes Multidisciplinares de Saúde Indígena (EMSI) não deixaram de acompanhar os pacientes.  Antes de entrar nas comunidades os profissionais sempre realizam testes para Covid-19, como forma de evitar o contágio da doença.

Em meados de 2020, a SESAI investiu em Equipes de Resposta Rápida (ERR) para atender casos de síndromes gripais entre os indígenas. Também fez parcerias com o Ministério da Defesa para realizar atendimentos básicos e especializados, impedindo, assim, que as demandas dos atendimentos dessa ordem fossem reprimidas durante a pandemia.

Segundo o boletim epidemiológico da SESAI, atualizado no dia 18 de fevereiro de 2022, desde março de 2020, o DSEI Vale do Javari mantém 21 indígenas em tratamento para a Covid-19, neste intervalo, 972 pacientes se recuperaram da doença e, infelizmente, 3 vieram a óbito.

O caso do idoso citado na reportagem, na verdade, é sobre um indígena, de 84 anos, que faleceu depois de sofrer um Acidente Vascular Cerebral, no dia 31/10/2021 e não de Covid-19. Ele era acompanhado pela EMSI do distrito.

Em fevereiro de 2022, duas indígenas vieram a óbito. A primeira indígena tinha 82 anos, era hipertensa e vivia na região próxima a de Cruzeiro do Sul (AC). Ao iniciar o atendimento, a EMSI observou nível de consciência prejudicada, emagrecimento acentuado e pele ressecada. A paciente não andava e não se alimentava adequadamente e preferiu se tratar com a cultura (pajelança) na aldeia Jaburu. A causa da morte está em investigação.

O terceiro caso de óbito ocorreu em Manaus (AM) e se tratava de uma indígena de 37 anos com acidose metabólica grave, choque séptico abdominal, sepse foco abdominal, insuficiência hepática aguda e infecção SARS COV-2 fora do seio de transmissão. A indígena era acompanhada pela Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena (EMSI) e foi referenciada para Manaus, em 7 de agosto de 2021, para acompanhamento com infectologista e realização de exames. A paciente ficou na CASAI até dia 20/01, quando apresentou epigastralgia e foi encaminhada ao Hospital Tropical, e em seguida, encaminhada ao Hospital 28 de Agosto para investigação diagnóstica, onde permaneceu até seu falecimento. As causas da morte também estão sendo investigadas.

Os profissionais de saúde do DSEI Vale do Javari trabalham diariamente nas aldeias com ações de educação em saúde e realizando busca ativa para vacinar todos os indígenas contra a Covid-19."

Edição: Rodrigo Durão Coelho