Um encontro em Brasília entre o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) e um apoiador indígena provocou atritos entre habitantes da Terra Indígena (TI) Enawanê-nawê, no noroeste do Mato Grosso, e evidenciou como o governo federal age para estimular divisão interna dos povos originários.
Dodoway Enawanê-nawê foi levado a Brasília no dia 13 de julho pelo vereador bolsonarista Norberto de Paula Junior (DEM), da cidade de Brasnorte, noroeste de Mato Grosso.
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Na sede da Fundação Nacional do Índio (Funai), ele foi recebido por coordenadores das áreas de etnodesenvolvimento e promoção da cidadania. Foram protocolados pedidos de licenciamento ambiental para desmatar a área e de maquinário para introduzir a agricultura mecanizada no território.
A comunicação institucional da Funai deu destaque à reunião e divulgou vídeos que mostram Bolsonaro recebendo palavras de apoio do indígena e fazendo promessas.
“Você vai poder mexer na sua terra, vai poder ser um cidadão”, afirma o mandatário ao visitante, referindo-se à possibilidade de aprovação do Projeto de Lei (PL) 490, que tramita na Câmara e abre as terras indígenas ao agronegócio, à mineração e à construção de hidrelétricas.
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Lideranças Enawanê-nawê temem que o encontro sirva como porta de entrada para o agronegócio, modelo rejeitado pela maioria da comunidade.
Dividir para conquistar
“Nós não aceitamos lavoura mecanizada dentro da Terra Indígena. Nós também não aceitamos o garimpo para sujar o rio. O que nós vamos fazer no futuro? Como vamos comer, alimentar famílias e comunidades? Por isso nós não aceitamos essa situação”, afirmou Kawali Enawenê-nawê, da aldeia Halataikwa, uma das maiores e mais isoladas do estado.
“Aqui na minha aldeia, a maioria dos povos indígenas não está ao lado dos políticos corruptos. Aqui, a maioria das comunidades indígenas não está a favor do PL 490, não está apoiando o presidente da república, Jair Messias Bolsonaro”, asseverou.
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O episódio serve para demonstrar o método pelo qual o governo federal vem tentando jogar lideranças indígenas umas contra as outras, conforme avalia o presidente da Federação dos Povos e Organizações Indígenas do Mato Grosso (FEPOIMT).
“Realmente ele [Bolsonaro] está usando [os povos indígenas]. Está fragmentando os povos indígenas para o seu objetivo. Tem que fazer valer [o mandato atual], porque ele não vai se reeleger. Ele conseguiu enganar todo mundo em nome do progresso”, diz Crisanto Rudzö Tseremey'wá, do povo Xavante.
“Infelizmente os povos indígenas estão sendo pegos pela barriga. Não só fome de se alimentar, mas a fome de várias formas. Os grupelhos se juntam e, de forma ousada, acabam se autorrepresentando, como se fossem do coletivo”, afirma a liderança.
Posicionamento isolado
Procurado pela reportagem, o indígena recebido por Bolsonaro, Dodoway Enawanê-nawê, reconheceu que não fala pela totalidade dos habitantes. “Eu não represento todos os índios, não. Eu represento a minha aldeia”. Ele lidera a aldeia Koliwinakwa, onde vivem aproximadamente 100 pessoas.
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A afirmação de Dodoway feita ao Brasil de Fato, no entanto, contradiz o conteúdo de uma carta assinada pelo próprio indígena.
Além de elogiar a atual gestão da Funai e o PL 490, o documento declara que "a etnia Enawenê apoia o atual governo e está trabalhando junto para o desenvolvimento do Brasil", sugerindo que o signatário representa o conjunto da comunidade. Leia abaixo:
Dodoway justificou o posicionamento: “eu quero melhorar a nossa qualidade de vida. Índio precisa trabalhar. Índio é rico de terra e pobre de dinheiro. Não vai perder nossa tradição. Aqui nós não queremos fazer conflito, queremos respeitar branco, respeitar fazendeiro, respeitar nosso cacique”.
Reação preventiva
Já na aldeia Halataikwa, onde vivem mais de mil pessoas, o sentimento geral é outro. Os moradores fizeram postagens nas redes sociais repudiando o encontro com o presidente.
Quando souberam a reunião em Brasília ocorreria sem a representação de toda a comunidade, caciques decidiram se mobilizar preventivamente.
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No dia 5 de julho, caciques da Halataikwa procuraram a unidade da Funai no município de Vilhena (RO) para manifestar o descontentamento. Lá, assinaram um documento pedindo o cancelamento do encontro.
“As lideranças aqui presentes declaram que não há decisão sobre qualquer assunto, seja de etnodesenvolvimento, cultura, política, saúde ou educação do povo Enawanê-nawê, sem sua presença, sem que toda a comunidade seja consultada”, diz o documento, ao qual o Brasil de Fato teve acesso.
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“Exigimos que a reunião [entre Dodoway e Funai] seja cancelada, pois não há representatividade do povo Enawanê-nawê nessa comitiva que se organiza para ir à reunião na Funai sede e, ainda sim, havendo tal reunião, deixamos claro que nada do que seja tratado poderá ser validado”, finaliza a carta assinada por seis lideranças, entre elas quatro caciques.
A pauta é dos ruralistas
O vereador de Brasnorte (MT) disse que viabilizou a reunião de Dodoway na Funai porque acredita na legalização do agronegócio, do garimpo e da extração de madeira em terras indígenas.
“Sou um bolsonarista, apoio o que o governo vem divulgando, principalmente nas questões indígenas. Dentro das reservas você vê índios escravizados por brancos e o branco ganhando muito mais. Eu vejo que se legalizar isso, eles vão ganhar muito mais”, afirmou Norberto de Paula Junior.
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“Eu defendo a demarcação de áreas onde estão os indígenas. A gente tem conhecimento que existiram invasões, que tiveram conflitos. Mas na minha região não tem histórico de conflito. Não posso falar por outras regiões”, completou.
Defendida por ruralistas, a abertura de terras indígenas a atividades econômicas predatórias é rechaçada pelas principais organizações indígenas do país.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), composta por sete entidades regionais que abrangem todo o território brasileiro - inclusive do Mato Grosso, onde estão os Enawanê-nawê -, direciona toda sua energia contra o avanço da fronteira agrícola, que traz o desmatamento e a descaracterização do modo de vida dos povos originários.
Aliciamento de lideranças
O presidente da FEPOIMT, organização ligada à Apib, lamenta que manifestações de apoio pontuais sejam superdimensionados pelo governo federal. Como exemplo, ele cita o próprio povo, os Xavante, que montaram uma cooperativa de agronegócio com o estímulo da Funai.
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“Os povos indígenas, através das instituições constituídas, fazem campanha contra esse modo de produção genocida. Ele [Bolsonaro] está usando bem esses meus parentes que caíram nessa, os Xavante, sendo aliciados por uma vida fácil, dinheiro fácil”, afirma Crisanto.
“Quem aderiu a essa forma de produzir, eu não acho errado. Nós somos seres humanos, temos direito de escolha. Para mim o que é errado é quando os povos originários aderem a uma política partidária. É doído quando vendem o direito de outros povos, de seus parentes”, finaliza.
Outro lado
Em nota, a Funai afirmou que "não estimula o conflito entre etnias" e que atua pela "ampliação do diálogo com as lideranças e por iniciativas que buscam atender as antigas demandas das populações indígenas".
Diante das críticas, o órgão indigenista atacou organizações não-governamentais que trabalham em parceria com os povos originários. Respondeu também que "tem atuado para resolver uma série de problemas, fruto de décadas de fracasso da política indigenista brasileira".
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"Contrária a tudo isso, a Nova Funai tem sua atuação pautada na legalidade, segurança jurídica, pacificação de conflitos e promoção da autonomia dos indígenas, que devem ser, por excelência, os protagonistas da sua própria história", finaliza o comunicado.
Edição: Rebeca Cavalcante