Antivacina, fake news, interesses escusos entre médicos e a indústria farmacêutica. À reboque do que temos acompanhado no enfrentamento da covid-19 em âmbito nacional, o município de Foz do Iguaçu, região oeste do Paraná, reverbera o negacionismo que paira sobre o país.
Em dezembro, a Associação Comercial e Empresarial de Foz do Iguaçu (ACIFI) divulgou em seu site institucional o seguinte informe: “Central de Atendimento Covid-19 participará do 1º Congresso Mundial Médicos Pela Vida”. Apresentado como “case de sucesso” durante evento promovido pela Associação Médicos Pela Vida, o projeto arrecadou, em menos de um mês, R$ 878 mil para promoção do kit covid na cidade.
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Por meio da mobilização de empresários, médicos, enfermeiros e profissionais de marketing, a “Central de Atendimento Covid-19” (CAC-FI) contabilizou, até 19 de janeiro, 4.701 consultas. Deste número, 2.894 pacientes receberam remédios ineficazes de forma gratuita. Segundo a coordenação do projeto, todo serviço é prestado por voluntários e doações.
Após a reportagem conversar com pessoas atendidas pela CAC-FI, a prescrição do kit covid foi confirmada. “O atendimento foi feito por vídeo-chamada. Não assinei nada. O médico só perguntou meus sintomas e em pouco tempo encerrou a consulta. Com tosse e febre, o kit chegou em uma sacola. Não paguei por nada”, contou um paciente, sob a condição de anonimato.
Dentre os medicamentos receitados pelo serviço médico paralelo, destaque para ivermectina, nitazoxanida e azitromicina.
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A combinação destes e outros remédios que integram o kit para tratamento precoce é rejeitada pela comunidade científica. Entretanto, por meio de campanhas massivas de fake news e análises distorcidas, sua promoção é estimulada pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), seus aliados políticos e profissionais de saúde vinculados ao grupo “Médicos pela Vida".
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Ilegal
Para Marcelo Beltrão Molento, professor de pós-graduação do curso de Medicina Veterinária da Universidade Federal do Paraná (UFPR), a distribuição organizada e informal de medicamento ineficaz deve ser considerada ilegal.
“Essas pessoas acham que estão fazendo um grande serviço à sociedade, porém, estão trabalhando fora de uma legalidade. Afinal, não há presença de instituição oficial que acompanhe o que é feito, o projeto não integra o programa municipal ou estadual para controle da doença. Da forma que está, isso é uma ilegalidade”, reforça o pesquisador.
Ao comentar a oferta de tratamento precoce em Foz do Iguaçu, o cientista foi taxativo. “Não dá para simplesmente apoiar um programa como esse e dizer que parte da boa vontade de salvar vidas. Isso não cabe”. Pesquisador da ivermectina há 25 anos, ele afirma que “pessoas vêm servindo de experimentação" ao consumir o remédio supostamente para tratar covid-19.
Negacionismo
Escolhido coordenador médico do projeto de promoção do kit covid à população iguaçuense, o médico João Ricardo Yamasita tem posição diametralmente oposta à do professor e pesquisador da UFPR.
O profissional, especialista em acupuntura, trabalha em uma clínica particular da cidade. Em sua opinião, o verdadeiro experimento em curso trata sobre a campanha global de vacinação contra a covid-19. Na internet, compartilha postagens anti-vacina e define as ações de imunização como “experimento genético obrigatório.”
Em uma de suas publicações no Facebook, o profissional publicou um vídeo que trazia caixas do remédio nitazoxanida sob o texto: “A esperança… Deus não abandona os seus! Obrigado senhor!”. Na legenda, o médico escreveu: “Nitazoxanida reduz 94% a transmissão do vírus”. A informação é falsa.
Ao contrário do que é propagado pelo médico acupunturista e seus asseclas, a Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) não recomenda tratamento farmacológico precoce para covid-19, seja qual for o medicamento (cloroquina, hidroxicloroquina, ivermectina, azitromicina, nitazoxanida, corticoide, zinco, vitaminas, anticoagulante, ozônio por via retal, dióxido de cloro).
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Segundo a organização, “os estudos clínicos randomizados com grupo controle existentes até o momento não mostraram benefício e, além disso, alguns destes medicamentos podem causar efeitos colaterais. Ou seja, não existe comprovação científica de que esses medicamentos sejam eficazes contra a covid-19”.
Não bastasse disseminar fake news para promover o kit covid, Yamasita também tem como alvo a campanha de vacinação do município. “Sou contra o experimento genético obrigatório, (...), pois a maioria dos contaminados agora já haviam recebido duas ou três picadas. Eu, particularmente, duvido que a maioria dos internados em Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) seja de não vacinados, e gostaria que o prefeito mostrasse estes dados”, polemizou, no último dia 17 de janeiro.
A contragosto do negacionismo, dados atualizados pela Secretaria Municipal de Saúde, referentes ao mês de janeiro, confirmam a importância da vacina. Os registros demonstram que o grupo de pessoas não vacinadas ou com esquema incompleto representam 72% das mortes por covid no período. As hospitalizações foram reduzidas 34%. Quanto às internações em Unidade de Terapia Intensiva (UTI), os registros apontam redução de 59% na ocupação dos leitos e de 9% na ocupação dos leitos de enfermaria.
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Indústria farmacêutica
Entusiasta da Associação Médicos Pela Vida, o coordenador médico da CAC-FI recorreu às redes sociais para compartilhar sua felicidade ao receber um diploma de honra ao mérito. Com sede em Recife (PE), a entidade que conferiu a honraria é alvo do Ministério Público Federal (MPF). De acordo com as investigações, a empresa Vitamedic, considerada a maior fabricante nacional de ivermectina, investiu R$ 717 mil para divulgação do kit covid no país.
A Procuradoria do MPF descobriu ainda que parte dos pagamentos para hospedagem do site da Associação Médicos Pela Vida foi bancada por uma empresa ligada à Vitamedic. Por dano potencial à saúde e dano moral coletivo, a farmacêutica e a Associação Médicos Pela Vida são processadas em R$ 55 milhões.
Procurada, a direção da ACIFI decidiu não responder ao pedido de entrevista. No mesmo sentido, o coordenador médico Ricardo Yamasita ignorou as tentativas de contato. Por sua vez, Mariângela Lukmann, coordenadora geral do projeto, compartilhou a prestação de contas da CAC-FI, em seguida, não respondeu mais.
A reportagem aguarda retorno para esclarecimentos.
Fonte: BdF Paraná
Edição: Lia Bianchini