Ao mesmo tempo que a Rússia é acusada de deslocar mais de 100 mil militares para a fronteira ucraniana, o Ministério da Defesa russo divulgou na última segunda-feira (24) imagens da transferência de equipamento militar pesado para o território da Bielorrússia, país que também faz fronteira com a Ucrânia. Esta movimentação, que conta unidades do exército russo como aeronaves e sistemas de defesa aérea, diz respeito aos exercícios militares entre Rússia e Bielorrússia, já programados anteriormente, que serão realizados em fevereiro entre 10 e 20 de fevereiro.
Os EUA, por sua vez, anunciaram na última segunda-feira (24) que colocaram 8,5 mil militares de prontidão no caso de uma ofensiva russa no território da Ucrânia. Posteriormente, na terça-feira (25), o presidente norte-americano Joe Biden disse que os EUA não deverão enviar tropas para a Ucrânia, mas ameaçou impor sanções ao presidente Vladimir Putin no caso de uma ofensiva no país do Leste europeu.
Enquanto as autoridades russas seguem reforçando que não são parte do conflito ucraniano e não têm nenhuma intenção de invadir o território do país vizinho, as evidências de uma escalada militar na região ficaram mais claras — e foi ligado o alerta sobre a possibilidade de um conflito.
Quais cenários possíveis?
O principal impasse entre a Rússia e o Ocidente em torno da Ucrânia diz respeito às exigências da Rússia de que a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) não se expanda para o Leste da Europa e que não incorpore a Ucrânia. Como as potências ocidentais não parecem dispostas a ceder às garantias de segurança, resta saber até que ponto Moscou e o Ocidente vão conseguir manter as apostas altas para evitar um conflito.
Para a pesquisadora-sênior do Instituto de Estudos dos EUA e Canadá da Academia de Ciências da Rússia Alexandra Filippenko, as garantias de segurança que Moscou exige da Otan estão no centro da atual tensão em torno da Ucrânia. Em entrevista ao Brasil de Fato, ela afirmou que as partes estão menos interessadas em um conflito armado e mais em demarcar certas fronteiras de segurança na Europa, mas ela destaca que é evidente que o Ocidente não tem interesse em ceder às exigências russas e não irá fazê-lo.
“É claro que o Ocidente não pode conceder nenhuma condição jurídica de garantias, e não irá fazer isso, porque a Rússia não é um país que faz parte da Aliança do Atlântico Norte, logo nenhuma força externa pode solicitar quaisquer exigências à Otan”, disse.
De acordo com a pesquisadora da Academia de Ciências da Rússia, um cenário possível para que Moscou aceite uma negociação para o ingresso da Ucrânia na Otan é a realização de algo parecido com o que aconteceu com a reunificação da Alemanha após a dissolução do Pacto de Varsóvia, no fim da Guerra Fria. Na ocasião, a Alemanha Oriental se reunificou com a Alemanha Ocidental com a condição de que não haveria bases militares, tampouco mísseis instalados no espaço da extinta República Democrática Alemã.
Apesar de considerar que algum compromisso diplomático deve prevalecer para evitar um conflito armado, Filippenko observa com preocupação a escalada militar na região como um sinal de alerta.
“Já foi encaminhado ao território bielorrusso equipamento militar pesado que pode lançar mísseis de médio alcance, de até 1.000 quilômetros. Por isso existe a sensação de que não é somente na fronteira russo-ucraniana, mas no território bielorrusso também se encontram importantes aparatos militares russos”, argumenta.
No que diz respeito à prontidão dos EUA de intervir e agir no território ucraniano, considerando um cenário mais negativo, a pesquisadora aponta que isso seria feito por tropas europeias, tendo em vista que os cidadãos norte-americanos “acabaram de observar o fim [da presença] no Afeganistão e seriam categoricamente contra o envio de soldados americanos de novo para algum lugar longe para defender os interesses de alguém”.
“Provavelmente se algo for acontecer, então não seria com soldados americanos, mas da Otan, e em primeiro lugar por parte dos países que estão mais preocupados com o que está acontecendo, como a Polônia, e aqueles países estão mais próximos do Leste da Europa”, acrescenta.
Já o especialista militar russo Vassili Kashin, em entrevista ao Brasil de Fato, disse acreditar que nenhum dos lados esteja interessado na guerra. De acordo com ele, as medidas militares tomadas pela Rússia e pelos EUA “são demonstrativas e destinadas a fortalecer suas posições na séria luta diplomática que estão travando sobre o futuro sistema de segurança europeu”.
“A única razão possível para a guerra poderia ser uma ação contundente da Ucrânia ou de uma das unidades do exército ucraniano, já que o país é instável e suas forças nem sempre são bem controladas. Se a guerra começar, a Rússia tentará derrotar completamente o exército ucraniano e a indústria de defesa ucraniana para garantir sua segurança para o futuro”, acrescenta.
Além disso, Kashin comenta que, em um cenário de conflito, seria provável que a Rússia reconheça oficialmente as Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk, regiões separatistas do leste da Ucrânia apoiadas por Moscou. Ambas as regiões, que se autoproclamaram repúblicas independentes mas não são reconhecidas por Kiev e pela comunidade internacional, representam o epicentro do conflito ucraniano.
Durante esta semana, o Partido Comunista da Federação da Rússia sugeriu que a Duma estatal (a Câmara baixa do Parlamento russo) pedisse ao presidente Vladimir Putin que reconhecesse as autoproclamadas repúblicas de Donetsk e Lugansk como estados independentes e soberanos. Segundo o partido, seu reconhecimento pela Rússia garantirá a segurança e proteção das repúblicas e "lançará o processo de reconhecimento internacional de ambos os estados".
Deterioração diplomática, mas sem guerra
A pesquisador Alexandra Filippenko especula que o reconhecimento da autonomia de Donetsk e Lugansk por parte da Rússia — por mais que ainda seja uma mera proposta sem perspectiva de se concretizar — causaria uma deterioração diplomática grave entre Rússia e Ucrânia, mas ao mesmo tempo isso daria a Kiev um motivo para se retirar dos acordos de Minsk, dos quais a Ucrânia é signatária e que não são cumpridos.
Estes acordos, assinados em 2014 e 2015, além de prever pontos como um cessar-fogo e retirada de armas da linha de contato, também visam uma profunda reforma constitucional na Ucrânia, a partir da qual se daria uma descentralização do poder, garantindo às regiões de Donetsk e Lugansk um status de autonomia especial. O governo de Kiev se recusa a cumprir a parte política prevista pelos acordos.
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Segundo Filippenko, o reconhecimento da independência das regiões separatistas por parte da Rússia poderia ser uma moeda troca de uma potencial guerra por uma espécie de guerra diplomática mais aguda, porém sem incursões militares.
“O mais importante é realmente evitar o conflito militar, e é claro que um reconhecimento [de Donetsk e Lugansk] e saída de Kiev dos acordos de Minsk não seria exatamente uma resolução do conflito, mas ao mesmo tempo isso diminuiria o grau de tensão, e mais adiante poderia se discutir algo. Que seja uma relação conflituosa, mas seria uma interação sem guerra”, argumenta.
Este cenário não seria exatamente algo inédito se lembrarmos da guerra de cinco dias entre Rússia e Geórgia, em agosto de 2008. Na ocasião, o governo da Geórgia realizou uma operação militar contra a região separatista da Ossétia do Sul, que faz parte do território georgiano, mas que possui maioria russa. A ação gerou uma rápida reação militar de Moscou, que em seguida reconheceu a independência da Ossétia do Sul e da Abecásia, ambas regiões separatistas na fronteira entre Rússia e Geórgia.
George W. Bush, presidente dos EUA na ocasião, tinha relações muito boas com Mikhail Saakashvili, o então presidente georgiano, mas apesar da expectativa de contar com o apoio de Washington e da Otan por parte da Geórgia, a Casa Branca decidiu não apoiar militarmente a Geórgia. Para Filippenko, a questão hoje é até que ponto os EUA ou outros países ocidentais estão dispostos a fornecer uma ajuda aberta à Ucrânia, o que ainda permanece como incógnita.
A pesquisadora destaca que após a incursão militar da Rússia na Geórgia em 2008, as repúblicas separatistas da Ossétia e da Abkházia foram reconhecidas pela Rússia, mas não pela grande parte da comunidade internacional. As relações da Rússia com a Geórgia, bem como com o Ocidente, ficaram abaladas desde então, mas foi evitado um conflito militar de maior escala.
Edição: Thales Schmidt