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"Guerra Fria 2.0": Rússia pode ter presença militar em Cuba e Venezuela?

Impasse sobre as exigências de segurança da Rússia à Otan faz Moscou mirar retórica geopolítica para a América Latina

Rio de Janeiro (RJ) |
Forças Armadas russas desfilam seus tanques em parada militar na Praça Vermelha, em Moscou - Dimitar Dilkoff / AFP

Em mais um capítulo do acirramento dos ânimos em torno da crise da Ucrânia, a Casa Branca declarou na última terça-feira (18) que a Rússia estaria pronta para invadir a Ucrânia “em qualquer momento”. O Ministério da Defesa ucraniano, por sua vez, comunicou que a Rússia teria completado o acúmulo de forças que poderiam ser usadas para um ataque contra suas fronteiras, mobilizando cerca de 127.000 soldados na região.

Somado a isso, os EUA aprovaram nesta quinta-feira (20) o pedido dos países bálticos — Letônia, Lituânia e Estônia — para permitir o fornecimento de armas norte-americanas à Ucrânia.

Já o Kremlin mais uma vez rechaçou as declarações sobre uma possível invasão russa. A Embaixada da Rússia nos EUA, através da sua página no Facebook, comunicou que "não vai atacar ninguém" e classificou os alarmes sobre uma suposta ofensiva russa contra a Ucrânia como “histeria”, pedindo o fim do aumento da tensão no leste ucraniano.

Enquanto o diálogo entre Rússia e Estados Unidos segue belicoso em meio à crise da Ucrânia, a diplomacia russa disse estar considerando várias opções para garantir sua própria segurança, admitindo a possibilidade de expandir a sua presença militar em países da América latina. 

Na quinta-feira da semana passada (13), o vice-chanceler russo, Serguei Ryabkov, não descartou que, se as negociações com o Ocidente sobre garantias de segurança que Moscou vem exigindo da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) falharem, medidas como a implantação da infraestrutura militar russa em Cuba e na Venezuela poderiam ser tomadas.

Recado para a Otan

O aceno da diplomacia russa em aumentar a sua presença militar na América Latina surge no contexto do impasse em que se encontra a relação entre Moscou e o Ocidente. A Rússia exige que os EUA e a União Europeia forneçam garantias de segurança relacionadas à não expansão da Otan perto das fronteiras russas, ultimato que o Ocidente não parece estar disposto a ceder.

Para o diretor do Centro de Estudos Ibero-americanos da Universidade de São Petersburgo, Victor Jeifets, dificilmente Moscou está de fato planejando uma incursão na América Latina com a implantação de bases militares, mas destacou que a retórica serve como um recado aos EUA. Em entrevista ao Brasil de Fato, Jeifets afirma que a estratégia geopolítica russa consiste não em estabelecer tropas e armamentos em países como Cuba ou Venezuela, mas “sinalizar a possibilidade de sua presença militar” na América Latina.


Teste do lançador de mísseis russo BM-30 no estado de Apure, na Venezuela. Moscou vende equipamento miltiar para os venezuelanos. / Juan Barreto / AFP

De acordo com ele, gostando disso ou não, a América Latina é enxergada pelos EUA como seu “quintal”, da mesma forma que o espaço pós-soviético é enxergado pela Rússia.

“Com o aumento do número de bases militares dos EUA e da Otan perto das fronteiras da Rússia, me parece que o Kremlin dá a entender: 'Em qualquer caso, nós também podemos estar perto de suas fronteiras'. Pode ser que não exatamente na fronteira, mas no Caribe, e assim os EUA poderiam sentir a mesma coisa que a Rússia vivencia”, diz.

A declaração do vice-ministro das Relações Exteriores russo gerou imediata reação da diplomacia estadunidense. O conselheiro de segurança nacional, Jake Sullivan, declarou que os Estados Unidos irão agir de forma decisiva se a Rússia tentar entrar na América Latina com seus militares.

Em resposta, o porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, lembrou as palavras da vice-secretária de Estado norte-americana, Victoria Nuland, que disse que os Estados Unidos prepararam 18 cenários de ação caso a situação na Ucrânia se agravasse. O porta-voz russo destacou que "a Rússia também está considerando diferentes cenários" para garantir a sua própria segurança. Sem entrar em detalhes sobre a possibilidade de mover tropas russas para Cuba e Venezuela, o porta-voz do Kremlin acrescentou:  "Com relação à América Latina, não devemos esquecer de que estamos falando de países soberanos".

Para Victor Jeifets, a reação do porta-voz do Kremlin, ao falar que a decisão de aceitar ou não bases russas seria uma prerrogativa da soberania dos Estados latino-americanos, Peskov praticamente "repete o que diz Otan sobre a possível adesão da Ucrânia ou a Geórgia na Aliança do Atlântico Norte". Para o pesquisador, isto representa uma "troca de retórica".   

Por isso, Jeifets acredita que a Rússia não planeja de fato implantar bases na América Latina, pois seria excessivamente custoso e tecnicamente complexo do ponto de vista militar.

“Não significa que a Rússia pretende realmente implantar uma grande quantidade de armamento [na América Latina], isso é desprovido de sentido militar, porque para concorrer militarmente com os EUA no hemisfério ocidental é preciso disseminar, no mínimo, armas nucleares. Mesmo se a Rússia implantasse, supomos, 30 mil militares, ou 50 mil, ou mesmo 100 mil ou o exército todo, isso ainda não chega perto do que podem movimentar os EUA nessa região”, argumenta.

Já o especialista militar Yuri Lyamin disse ao Brasil de Fato que uma opção menos onerosa e arriscada seria, por exemplo, a criação de um centro logístico para a frota russa em países aliados no continente americano, mas destacou que “consequentemente, a pressão sobre os Estados Unidos de tal passo seria muito menor”.

Segundo ele, o principal objetivo de uma possível presença militar russa na América Latina é exercer pressão militar e política sobre os Estados Unidos em resposta a uma presença militar norte-americana permanente perto das fronteiras da Rússia, considerando que “a situação de segurança da Rússia é agora muito pior do que era durante os anos da Guerra Fria”.


Militares da Guarda Nacional ucraniana participam de um exercício militar perto do porto ucraniano de Mariupol no Mar de Azov / Ministério do Interior da Ucrânia

Yuri Lyamin acrescenta que durante a Guerra Fria os EUA então percebiam a rivalidade e a ameaça da URSS com mais paridade, enquanto nas últimas décadas os EUA encararam a Rússia com mais fraqueza. Além disso, ele observa que a Rússia não tem mais a proteção que havia com o agrupamento dos países do Pacto de Varsóvia. Com isso, Moscou estaria buscando reequilibrar esse jogo de forças e “está tentando aumentar a pressão sobre Washington por várias direções”.

Sem apego ideológico, Rússia adota política externa pragmática

O diretor do Centro de Estudos Ibero-americanos da Universidade de São Petersburgo destaca que a aproximação da Rússia com países da América Latina é facilitada pelo pragmatismo adotado por Moscou, sem fazer recortes ideológicos no estabelecimento de alianças na região.

Victor Jeifets frisa que na atual política russa não há qualquer traço de um governo de esquerda, independente das boas relações e acenos de aproximação com governos socialistas, como Cuba e Venezuela.

De acordo com ele, Cuba e Venezuela interessam a Moscou não como países de esquerda, “mas como países que têm o ponto de vista correspondente ao da Rússia em uma série de questões e que estão prontos para apoiar a Rússia”.

O pesquisador acrescenta que, se as diretrizes geopolíticas russas hoje lembram o período soviético de um contexto de Guerra Fria, “não é no plano da nostalgia pela ideologia da esquerda comunista, mas no plano da nostalgia do Império".

Além disso, Jeifets aponta que o pragmatismo russo também é movido por interesses econômicos e pela cooperação técnico-militar com países da região. Ele observa que a crise venezuelana, por exemplo, deu a possibilidade à Rússia de aumentar seriamente seu papel no setor energético nos países da América Latina.

Por outro lado, se compararmos a relação da Rússia com governos de direita, veremos o mesmo pragmatismo nos aspectos comerciais, lembrando que a cooperação econômica não foi afetada pela emergência de governos de aspecto neoliberal — e alinhados aos EUA — como a gestão de Mauricio Macri, na Argentina, ou de Michel Temer, no caso brasileiro.


Encontro entre Putin e Bolsonaro durante a Cúpula dos Brics, realizada em Brasília em 2019 / Marcos Corrêa/PR

No primeiro caso, a cooperação russo-argentina era considerada uma parceria estratégica, impulsionando as relações comerciais especialmente nas áreas de investimentos e comércio. No caso brasileiro, Putin estabeleceu ótimas relações durante os governos do Partido dos Trabalhadores (PT), sobretudo com a emergência do grupo Brics. E mesmo com a derrubada da ex-presidenta Dilma Rousseff, o presidente russo recebeu Temer e sua delegação em Moscou, focando o encontro no aprofundamento das relações comerciais.

O que esperar do encontro de Putin e Bolsonaro?

Após um convite feito por Vladimir Putin em dezembro de 2021, a expectativa é que o presidente Jair Bolsonaro visite Moscou para uma reunião bilateral com o seu homólogo russo em meados de fevereiro.

Para o diretor do Centro de Estudos Ibero-americanos da Universidade de São Petersburgo, Victor Jeifets, é possível presumir que o Brasil espere, antes de tudo, a ampliação da cooperação econômica com Moscou.

“Para o Brasil isso é muito importante, porque a recessão não terminou e para Bolsonaro é importante ir para as eleições mostrando êxitos econômicos. E na medida em que Lula é o seu principal rival, é muito importante para ele comprovar que não é só a esquerda que pode ter boas relações com a Rússia”, acrescenta.

Além disso, o pesquisador destaca que o discurso da política externa russa de defesa do princípio de não interferência na soberania dos Estados pode servir como uma plataforma para Bolsonaro fortalecer seu antagonismo com a União Europeia no debate sobre as questões climáticas e políticas na Amazônia, por exemplo.

Jeifets observa, no entanto, que a Rússia e os países dos Brics, ao defenderem a soberania em suas manifestações na Cúpula dos Brics realizada no Brasil, falaram sobre a defesa de seus próprios assuntos internos, mas “Bolsonaro entendeu como quis entender” e, com isso, pode impulsionar essa retórica para ganhos políticos.

Edição: Thales Schmidt