Nos primeiros dias de 2022, protestos inicialmente impulsionados pelo aumento dos preços de gás no Cazaquistão se alastraram por todo o país, causando uma crise sem precedentes no maior país da Ásia Central. A escalada da tensão gerou intensos confrontos entre manifestantes e as forças de segurança, ataques a prédios do governo e, de acordo com os dados mais recentes, 164 pessoas foram mortas. As autoridades declararam estado de emergência em todo o país até 19 de janeiro.
Alegando "ameaça terrorista", o atual presidente do Cazaquistão, Kasim-Jomart Tokayev, solicitou ajuda da Organização do Tratado de Segurança Coletiva (OTSC), que enviou um total de 2.500 tropas, a maioria formada por militares russos, para normalizara a situação do país.
A OTSC foi criada em 2002 com base em um antigo acordo sobre segurança coletiva dos países da Comunidade dos Estados Independentes (CEI), adotado em 1992, logo após o colapso da União Soviética, para assemelhar-se à estrutura da Otan ou ao extinto Pacto de Varsóvia. Atualmente é formada por Armênia, Bielorrússia, Cazaquistão, Quirguistão, Rússia e Tadjiquistão.
Na última quarta-feira (12), o presidente cazaque declarou que a principal missão das forças da OTSC, que ele classificou como “contingente de manutenção da paz”, foi "concluída com sucesso", anunciando uma retirada gradual das tropas.
Enquanto o Cazaquistão busca recuperar a sua estabilidade internamente, no cenário regional e internacional a crise no país já apresenta efeitos geopolíticos significativos. É o que afirma o vice-diretor do Instituto de História e Política da Universidade Estatal Pedagógica de Moscou, Vladimir Shapovalov. Em entrevista ao Brasil de Fato, ele observa que a operação da OTSC no Cazaquistão abriu um grande precedente não só no espaço pós-soviético, mas na Eurásia em geral: "surgiu no mundo uma terceira aliança militar", disse.
O pesquisador destaca que até recentemente a OTSC era tratada com bastante ceticismo, sendo vista, tanto na Rússia, quanto no exterior, como uma estrutura de existência formal, mas na realidade não preparada para realizar certas funções. Agora, com a inédita operacionalidade de mobilizar tropas em um tempo muito rápido com a adesão unânime de todos os aliados, a OTSC emerge como uma nova aliança militar, fazendo concorrência ao Conselho de Cooperação do Golfo (CCG) e, principalmente, à Otan.
“As ações da operação de paz da OTSC criam uma situação absolutamente nova, não só no espaço pós-soviético, mas na Eurásia em geral, porque demonstram o preparo dos aliados para ações rápidas e efetivas. E isso eu acho que é o principal resultado da crise do Cazaquistão", afirma.
Receio de uma nova "revolução colorida"
Localizado na região fronteiriça entre Rússia e China, o Cazaquistão é o maior país da Ásia Central e um importante aliado de Moscou, tanto na área econômica com grandes investimentos em petróleo e extração de urânio, quanto no setor aeroespacial — a base espacial de Baiconur fica em território cazaque e é arrendada pela Rússia.
Para a Rússia, portanto, está longe de ser interessante um cenário de caos e instabilidade no Cazaquistão. Isso explica a rápida resolução liderada por Moscou de enviar tropas da OTSC para estabilizar a situação no país vizinho.
O estrategista político e chefe da agência de consultoria política "Ignatov Consulting", Alexey Ignatov, disse ao Brasil de Fato que o Cazaquistão é tradicionalmente incluído na “esfera de influência” de Moscou, portanto, não é do interesse nacional da Rússia deixar o desenvolvimento da situação interna do país vizinho “seguir seu curso”.
De acordo com ele, a reação instantânea da Rússia aos eventos no Cazaquistão, com a introdução de um forte contingente militar através do mecanismo da OTSC é, antes de tudo, “um sinal para ‘parceiros’ externos e seus ‘representantes’ internos na Rússia”.
O cientista político afirmou que o principal receio da Rússia com a crise no Cazaquistão é a irrupção de uma nova “revolução colorida”, termo atribuído a manifestações políticas de caráter pró-ocidente no território das ex-repúblicas da União Soviética.
“O sinal é simples e inequívoco: as autoridades não permitirão nenhuma ‘revolução colorida’ na Rússia e também agirão de forma decisiva e rápida no circuito externo”, destaca Ignatov.
O caso mais emblemático de instabilidade na esfera de influência da Rússia nos últimos anos é o da Ucrânia. Em 2014, protestos contra o governo pró-Moscou e a favor do Ocidente resultaram em um golpe de Estado e dividiram o país, gerando uma guerra civil. A crise ucraniana foi o estopim para deteriorar a relação entre Rússia e o Ocidente. Moscou e Washington se acusam mutuamente de interferir no país do Leste Europeu e gerar instabilidade na Ucrânia.
Durante a cúpula da OTSC, o presidente russo Vladimir Putin declarou que métodos semelhantes a “Maidan” foram usados durante o caos no Cazaquistão, fazendo referência aos protestos na Praça Maidan, em Kiev, que resultaram na crise ucraniana em 2014.
Alexey Ignatov observa que um dos aspectos mais singulares da ação de Moscou no caso da crise no Cazaquistão é o fato de que a Rússia teria aprendido, seguindo o exemplo dos norte-americanos, a usar os mecanismos de apoio internacional para suas ações e defender seus interesses nacionais.
“Os Estados Unidos sempre camuflam todas as suas operações em todos os países do mundo com algumas decisões gerais de ‘humanidade progressista’: através das ações do bloco da Otan ou de várias coalizões internacionais de alguns países. E aqui a Rússia utilizou o mecanismo da OTSC para introduzir um contingente de militares de manutenção da paz de diferentes países - com o óbvio papel de liderança dos militares russos”, argumenta.
Crise também é uma oportunidade para Rússia
Desta forma, a inédita operacionalidade de mobilizar de maneira eficiente e rápida um contingente da OTSC surge, ao mesmo tempo, como uma oportunidade para a Rússia dar as suas cartas na arena internacional e reforçar um contrabalanço à atuação da Otan no território pós-soviético.
Para o cientista político Vladimir Shapovalov, a operação de paz da OTSC deve ser compreendida no contexto das complicadas relações que existem entre a Rússia e a Otan, bem como as atuais negociações que ocorrem entre Rússia, Otan e EUA.
“Na prática, por um lado, a Rússia exige que a Otan para e recue para trás, e por outro lado demonstra a capacidade de rápida reação e ações coletivas da parte de sua aliança militar. A Rússia com isso afirma: ‘vejam, nós temos a nossa aliança militar’”, completa.
A operação capitaneada por Moscou não passou em branco em Washington e suscitou críticas por parte do secretário de Estado norte-americano, que afirmou que o Cazaquistão poderia ter dificuldade em se livrar das tropas russas: "Uma lição da história recente é que, uma vez que os russos estão em sua casa, às vezes é muito difícil fazer com que eles saiam", disse Antony Blinken.
A chancelaria da Rússia, por sua vez, classificou o comentário de Blinken como “tipicamente ofensivo", acrescentando que os EUA deveriam analisar seu próprio histórico de intervenções em países como Vietnã e Iraque: "Isso nos é ensinado não apenas pelo passado recente, mas por todos os 300 anos de existência de um Estado americano”, publicou o ministério russo.
Para o cientista político Vladimir Shapovalov, o precedente aberto pela operação das tropas da OTSC no Cazaquistão diz respeito também ao fato de que até recentemente os “EUA sempre atuaram como força policial do mundo, e nesse papel não foram muito bem, permitindo muitas arbitrariedades”. De acordo com ele, ao mesmo tempo, de fato não havia alternativa para exercer esse papel em crises e conflitos no mundo. “Agora essa alternativa existe: a OTSC”, completa.
Edição: Thales Schmidt