Pandemia

Artigo | Os migrantes internacionais e a vacinação contra a covid-19

Entre os não imunizados estão talvez milhares de migrantes que não vão aos postos de vacinação para não serem deportados

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Desde o início da campanha de imunização, ainda em janeiro de 2021, documentos como o CPF foram exigidos ao arrepio da constituição brasileira - Divulgação/GOV.BR

Em 17 de agosto de 2021, o município de São Paulo divulgou que 100% da população acima de 18 anos residente na cidade havia recebido ao menos uma dose de vacina contra a covid-19, ou a vacina de dose única.

À época, o boletim do Vacinômetro, computava quase 8,9 milhões de primeiras doses aplicadas, além de 318 mil doses únicas. O último boletim, divulgado no dia 4 de novembro, apontava 108% da população acima de 18 anos vacinada com ao menos uma dose ou dose única, e 103% dos adolescentes entre 12 e 17 anos na mesma situação.

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Quase dois meses depois, uma articulação entre setores da sociedade civil logrou a realização daqueles que foram os únicos esforços específicos para vacinação da população migrante em São Paulo, e uma das poucas ocorridas em todo o país.

Nos dias 11/09 e 30/10, nos bairros de Lajeado e Cidade Tiradentes – ambos no extremo-leste de São Paulo –, duas ações promoveram vacinação de migrantes contra a covid-19.

Em um universo de cerca de 380 migrantes atendidos por serviços de regularização migratória, assistência social, ajuda humanitária e serviços consulares, 73 pessoas foram imunizadas dispensando a apresentação de documentos brasileiros e comprovantes de residência, sendo 67 delas com a primeira dose (92% de todos os vacinados nas ações).

Isso significa dizer que 17,6% dos presentes não haviam tomado sequer uma dose da vacina dois meses após o anúncio realizado pela Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo.

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Ainda que a amostra não permita análises acerca do universo de migrantes, ficou patente algo que tem sido argumentado desde o início desta crise: a população migrante residente no Brasil e em São Paulo tem passado ao largo das preocupações do Poder Público, e o mesmo se deu durante a estruturação dos esforços de vacinação.

Desde o início da campanha de imunização, ainda em janeiro de 2021, documentos como o CPF foram exigidos ao arrepio da constituição brasileira e da Lei nº 8080/90, e campanhas de informação sobre a vacinação para migrantes foram escassas, com linguagem inadequada e informações defasadas.

É preciso tomar como premissa, portanto, que é muito provável que uma parcela considerável da população migrante não tenha tomado sequer uma dose de vacina contra a covid-19, e que os governos brasileiros – municipais, estaduais e federal - têm feito ouvido de mercador quando questionados a respeito.

O método do apagamento

Antes de mais nada, é preciso compreender o cálculo feito pela Prefeitura de São Paulo para poder divulgar que 100% da população elegível para a vacinação foi efetivamente imunizada. Este cálculo cruza os dados demográficos estimados da população da cidade com o número de doses aplicadas, tomando como base uma estimativa populacional.

Tal estimativa obedece, por óbvio, a critérios científicos, e é obtida via cálculos que levam em consideração a fecundidade, a taxa de mortalidade, as migrações e a população de partida, informada pelo último censo realizado no país, ainda em 2010.

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Estimativas, entretanto, não são equivalentes a processos diligentes de recenseamento e, ainda que o número aproximado seja suficiente para calcular a população a ser atendida, ele não representa o número exato da população, pois ignora inúmeras variáveis que só podem ser mapeadas efetivamente em um censo.

Em um país cujo recenseamento tem sido propositalmente protelado, não existem dados precisos sobre a população a quem se destina essas vacinas.

Um outro ponto sobre a metodologia que baseia a divulgação deste resultado é que o percentual da população vacinada é calculado a partir do número de doses aplicadas, o que significa dizer que não há instrumento que garanta vinculação entre a vacina aplicada e a pessoa em que ela foi ministrada.

Isso significa que neste bojo podem entrar pessoas que vacinaram mais de uma vez, pessoas que vieram de outros municípios e se vacinaram na cidade, além de pessoas que não estavam incluídas na estimativa populacional que serviu de base para o cálculo porque estão irregulares no país.

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Nesta seara, também é preciso pontuar que parte expressiva da população não possui qualquer documento: há um contingente enorme de pessoas invisíveis ao Estado que não têm sido computadas no cálculo de porcentagem da população vacinada – isso explica, por exemplo, porque o número divulgado excede os 100%: mais doses foram aplicadas do que o que se estimava ter de população.

Este é o caso de muitos migrantes internacionais. A população migrante regularizada na cidade é de 367.043 pessoas, segundo o Observatório das Migrações em São Paulo. Se toda essa população residisse em um único munícipio, seria o 20º mais populoso do estado, e figuraria entre as 70 maiores cidades do país.

Esses números, no entanto, são um retrato do apagamento de milhares de migrantes que vivem no país sem documentos, cujas entradas não foram registradas e passam alheios aos bancos de dados e estimativas oficiais.

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Vivemos atualmente uma pandemia de indocumentação de imigrantes e refugiados. Sob pretexto de garantir segurança sanitária ao país que foi o epicentro da pandemia na América do Sul e cujo presidente é acusado de cometer uma série de crimes durante a gestão da crise sanitária, todas as fronteiras terrestres foram fechadas (à exceção da fronteira Brasil – Paraguai), e os migrantes que adentraram o país após a edição da portaria 120, de 17 de março de 2020, foram impedidos de se regularizar pois estavam proibidos de entrar no Brasil.

Milhares foram deportados, e outros milhares estão no país sem qualquer documento. Essas são pessoas que não podem sinalizar sua existência ao Estado em virtude da constante ameaça de deportação em razão de sua entrada irregular no país.

Para piorar, a suspensão dos prazos para obtenção ou registro de residência e registro de visto temporário para migrantes cujos documentos tenham expirado até 16 de março de 2020 acaba servindo como justificativa para que os órgãos responsáveis pela regularização migratória, como a Polícia Federal, adotem uma postura de “operação padrão”, lentificando ao extremo os trâmites dos processos e não disponibilizando datas para o agendamento de atendimentos – há migrantes que estão há meses esperando para serem atendidos.

Apartheid das vacinas

Desde 28 de maio, o município de São Paulo exige a apresentação de comprovante de residência para realizar a vacinação contra a covid-19. Tal exigência é inconstitucional e incompatível com os princípios do SUS, ainda que o governo municipal tenha autonomia para decidir a aplicação de medidas que visem à melhor gestão dos insumos que lhe são entregues para administrar pelo Ministério da Saúde.

Tal orientação necessita, como todas as outras, da adesão dos profissionais de saúde que atuam na ponta, e não faltam relatos da dispensa de apresentação deste documento em diversos pontos de vacinação em toda a cidade – geralmente dizem respeito àqueles localizados em áreas nobres.

Também é comum que algumas equipes de saúde sejam flexíveis em relação a essa exigência, aceitando, por exemplo, declarações de próprio punho de líderes de ocupações irregulares, tipo de moradia bastante comum entre migrantes.

Mas a verdade é que vários são os relatos de negativa de vacina a migrantes por falta da apresentação deste documento, em especial em bairros periféricos, precisamente onde a pandemia ceifou mais vidas.

Evidentemente, esta não é uma exigência que nega direitos apenas a migrantes, mas também a nacionais: uma parcela considerável da população brasileira residente em São Paulo também não tem condições de apresentar comprovação de residência – em 2018, por exemplo, 45 mil famílias paulistanas moravam em moradias irregulares, e, infere-se, estavam impossibilitadas de possuir qualquer tipo de comprovação de residência, uma vez que não possuíam sequer logradouros a serem comprovados.

É preciso apontar que entre os não imunizados estão centenas, e talvez milhares de migrantes que não irão aos postos de vacinação sob pena de serem deportados.

A determinação, que supostamente visa reservar doses para munícipes e evitar que exista um turismo da vacina na cidade, acaba por realizar uma reserva de vacinas recortada por raça, classe, gênero e nacionalidade.

Assim, é preciso apontar que não são todos os migrantes acometidos pela burocratização do direito à saúde e à vida, em um claro desrespeito aos princípios da universalidade e da equidade do SUS, senão aqueles pobres, negros e indígenas que moram nas margens da cidade.

Assim, jornais noticiam aliviados que a imensa maioria das pessoas que ainda morrem em decorrência da covid-19 são aqueles que não se vacinaram, argumento que a um só tempo vincula de maneira automática a não vacinação a uma postura ideológica propensa à recusa da imunização, e comprova a eficácia das vacinas disponíveis no Programa Nacional de Imunização, principal artifício retórico utilizado para combater um incipiente movimento antivacina - que encontra eco nas mais altas esferas de poder, mas que, no Brasil, tem como principal característica o raquitismo.

É preciso apontar que entre os não imunizados estão centenas, e talvez milhares de migrantes que não irão aos postos de vacinação sob pena de serem deportados, ou porque não houve interesse governamental de produzir e distribuir peças de informação específicas e multilíngues.

Além disso, a lógica que produziu um verdadeiro apartheid global de vacinas se reproduz localmente. Como exemplo, países como o Canadá adquiriram doses suficientes para vacinar dez vezes toda sua população, enquanto a República Democrática do Congo vacinou apenas 0,12% de sua população.

Localmente, populações descartáveis são intencionalmente invisibilizadas em um apagamento que se confunde com uma lógica de extermínio. Enquanto o novo normal se torna uma cópia mal ajambrada de seu predecessor – o velho normal –, com retorno compulsório às aulas sem distanciamento e a suspensão do uso de máscaras, existe um grande contingente de migrantes pobres, negros, indígenas e moradores das margens da cidade que não foram imunizados por desinteresse do Poder Público.

Mais: caso se contaminem e morram, suas mortes serão celebradas pelos negacionistas que supostamente eram. Não é esta a necropolítica?
 

*Alexandre Branco Pereira é cientista social pela Universidade de Brasília (UnB), mestre e doutorando em antropologia social pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Pesquisador do LEM (USFCar), do Promigras - Migração e Saúde (Unifesp) e da Rede Covid-19 Humanidades MCTI. Coordenador da Frente Nacional pela Saúde de Migrantes (FENAMI), do Observatório Saúde e Migração (UFSCar) e da Rede de Cuidados em Saúde para Imigrantes e Refugiados. Também coordenou a comissão organizadora da 1ª Plenária Nacional sobre Saúde e Migração. Integra o Comitê Migrações e Deslocamentos da Associação Brasileira de Antropologia (ABA). Pesquisa saúde mental desde 2010, e as interfaces entre saúde e migração desde 2015. É autor dos livros "Mas é só você que vê?" (Editora NEA), e "Viajantes do Tempo: imigrantes-refugiadas, saúde mental, cultura e racismo na cidade de São Paulo" (Editora CRV).

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

 

Edição: Leandro Melito