CONGRESSO

Análise | Com quantos orçamentos secretos se mantém o fascismo?

É o total controle do orçamento público que faz o Centrão assistir imóvel a um presidente que debocha de nossos mortos

Brasil de Fato | Belo Horizonte (MG) |
Bolsonaro viu no orçamento secreto, além da oportunidade para a sua sobrevivência política, uma chance de tirar de seus ombros o peso de decidir sobre o orçamento do governo - Antonio Cruz/Agência Brasil

A cada votação importante para a agenda do governo Bolsonaro, volta aos noticiários um tema para lá de obscuro: o orçamento secreto. Este texto tem como objetivo trazer à tona como funciona esse tal orçamento secreto, a razão de sua existência e, principalmente, o que tem de errado ou suspeito nessa prática.

Primeiro, cabe abrir um breve parêntese sobre como funciona o orçamento público. Os gastos do governo são regulados e estabelecidos por meio de leis que devem ser votadas pelo Congresso. Uma delas, a Lei Orçamentária Anual, é a que estabelece de fato para onde vai cada recurso do governo. Essa Lei é redigida pelo Executivo e enviada aprovação do Congresso.

Para garantir a base parlamentar para aprovar retrocessos, Bolsonaro montou uma estrutura de distribuição de emendas

Uma vez no Congresso, o parlamento pode modificar o destino dos investimentos do governo. Além dessa alteração, cada parlamentar tem controle sobre uma fatia do orçamento por meio das famosas emendas parlamentares. O valor exato dessas emendas varia a cada ano porque elas são calculadas a partir da projeção de receitas do governo federal.

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Até 2015, o governo não era obrigado a executar essas emendas. Então, era comum os governos fazerem cortes nesses recursos para manter o controle sobre sua base parlamentar e sobre o orçamento propriamente dito. Contudo, após a aprovação de algumas emendas à Constituição, o governo teve seu controle sobre o orçamento reduzido e essas emendas passaram a ser de execução obrigatória. 

Algo em torno de 30 bilhões em 2020, passou a ser usado para alugar a adesão de parlamentares ao governo

As emendas constitucionais foram aprovadas sob o discurso de que o governo deveria perder sua capacidade de comprar o parlamento com emendas parlamentares e de que todos os parlamentares deveriam ser tratados de forma igualitária. Essa obrigatoriedade de tratamento igualitário dos parlamentares, portanto, foi levada para a Constituição por meio dessas alterações ao texto constitucional feitas pelo próprio parlamento. Fechado esse parêntese, passemos ao orçamento secreto.

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Relatora do processo, Rosa Weber apontou "caráter obscuro do sistema" do orçamento secreto / Divulgação

Como funciona o orçamento secreto

Bolsonaro, no início de seu governo, manteve uma articulação bastante improvisada com o Congresso Nacional. Por isso assistimos a várias mudanças no responsável pela articulação política no governo. Essa tarefa passou das mãos de Onyx Lorenzonni para as mãos do “Partido Militar”, mais especificamente para Luiz Eduardo Ramos e, posteriormente, para as mãos do Centrão, com a entrada de Ciro Nogueira e Flávio Arruda para o governo. Foi na gestão do “Partido Militar” à frente da articulação entre o governo Bolsonaro e o Congresso que nasceu a solução do orçamento secreto.

Antes detratores do chamado Centrão, os militares iniciaram uma campanha de aproximação entre esse grupo de parlamentares e o governo Bolsonaro. A principal tática para isso foi o que há de mais baixo na política de alianças: o aluguel do apoio parlamentar por meio de benesses do governo. Para fazer isso, o governo precisava se desvincular da amarra provocada pela alteração no texto parlamentar que tornou obrigatória e igualitária a execução as emendas parlamentares. A solução encontrada foi a emenda de relator (chamada de RP9). Mas o que é essa emenda do relator? O que ela tem de diferente?

Bolsonaro, na prática, passou a chave do cofre para o Centrão, sob a coordenação de Arthur Lira

Lembra que eu mencionei que a lei que distribui os investimentos do governo é votado no Congresso? Então, por isso, ela passa por algumas etapas dentro do próprio parlamento antes de ser aprovada. Uma dessas etapas é a votação na comissão do orçamento. Nela, é designado um parlamentar para relatar e analisar o projeto enviado pelo governo. 

O relator do orçamento costumeiramente faz alterações técnicas no orçamento, em regra para corrigir erros e omissões e recompor dotações canceladas. Como é para ajustes técnicos, a emenda do relator tinha, até 2020, um tamanho pequeno, se comparada ao restante do orçamento (em 2017, as emendas de relator foram no valor de R$ 5,83 bi, em 2018 foram no valor de R$ 7,05 bi). Porém, a partir de 2020, isso se alterou.

Para pagar o aluguel do Centrão e garantir a base parlamentar suficiente para aprovar a agenda de retrocessos, Bolsonaro, com iniciativa do “Partido Militar”, montou uma estrutura de distribuição de emendas. Agora, o valor a ser alocado pelo relator aumentou muito. Passou para algo em torno de 30 bilhões em 2020, representando mais de 20% das despesas do governo que não cumprem obrigações legais (discricionárias). 

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STF e Congresso Nacional vivem embate sobre legalidade das "emendas de relator" / Agência Câmara

Em 2021, o montante foi reduzido para algo em torno de 16 bilhões apenas após uma forte pressão da sociedade civil. Com essa operação, o governo delegou completamente para o Centrão a sua articulação política e o controle do orçamento. E esse valor passou a ser usado pelo relator e pela presidência da Câmara para alugar a adesão de parlamentares ao governo.

Então, o destino dos recursos do governo federal passou a ser decidido por conversas de WhatsApp entre os deputados dispostos a alugar o seu voto, o relator do orçamento e o presidente da Câmara. Por isso, a execução de emendas de relator passou a aumentar vertiginosamente às vésperas de votações importantes para o governo.

E isso tudo às sombras, sem que as eleitoras e os eleitores pudessem acompanhar quem destinou essas emendas e para quem. A obscuridade da autoria dessas emendas não é um fato menor, tanto que os parlamentares, até aqui, estão sonegando essas informações. Ora, a que interessa esse segredo? Certamente não é ao interesse público.

O Centrão controla o orçamento

Bolsonaro não é muito habituado à responsabilidade. Acostumado com as águas tranquilas do baixo clero da Câmara e com a passada de pano das instituições, que, na época em que ainda era militar, o isentou até mesmo de punição pelo planejamento de ato terrorista contra as Forças Armadas, Bolsonaro viu no orçamento secreto, além da oportunidade para a sua sobrevivência política, uma chance de tirar de seus ombros o peso de decidir sobre o orçamento do governo.

Com um montante tão alto de orçamentos nas mãos do parlamento e o pouco espaço deixado pelo teto de gastos, Bolsonaro, na prática, passou a chave do cofre para o Centrão, sob a coordenação de Arthur Lira. Isso pode, inclusive, não ser apenas uma figura de linguagem. Há quem diga que o relator do orçamento tem a senha do sistema orçamentário e a autorização de execução das emendas está sendo dada dentro do próprio Congresso. É esse total controle do orçamento público que tem feito o centrão assistir imóvel a um presidente que debocha de nossos mortos, que tira a carne de nossa mesa e que tem destruído o nosso país.

Parte desse orçamento secreto ganhou ainda mais um grau de obscuridade na operação chamada de tratoraço. O tratoraço é fruto de uma combinação de fatores: a) o controle do orçamento pelo centrão; b) um ministro sedento por recursos, Rogério Marinho, para ter obras para mostrar, e assim, se tornar viável eleitoralmente, a ponto de criar um esquema para tornar mais informal a alocação de recursos em seu ministério. 

Rogério Marinho quer se viabilizar como candidato no Rio Grande do Norte, depois de ter sido enxotado pelo povo potiguar por seu apoio à reforma trabalhista. E, por isso, fez uma campanha ostensiva em 2020 e em 2019, nos corredores do parlamento, para destinação de emendas para o seu ministério. Para tornar seu ministério mais atrativo, montou um esquema que permite a alocação de recursos por meio de ofícios de parlamentares. Ou seja, criou facilidade para que os parlamentares se sentissem mais propensos a destinar recurso a ele.

Por isso, o Ministério do Desenvolvimento Regional e a Codevasf, entidade vinculada a esse ministério, se tornaram o atalho preferencial de deputados e senadores para destinar recursos, principalmente, para a aquisição de equipamentos agrícolas. Além do benefício da informalidade, a destinação de recursos para a Codevasf ainda conta com a facilidade de poder ter recursos executados mais facilmente, com regras menos restritivas quanto à licitação.

É tão mal-intencionada a ação de Rogério Marinho de transformar o seu ministério em um espaço facilitado para falcatruas que, na cartilha distribuída pelo seu ministério aos parlamentares na ocasião da elaboração do orçamento, continha uma sugestão de preços de itens (como tratores, escavadeiras etc.) com sobrepreço, como reconheceu o TCU. Ou seja, no ato de propaganda do ministro já havia a indicação de equipamentos agrícolas por preços até 259% acima dos valores de referência fixados pelo governo.

É essa facilitação de falcatrua que está em debate no STF com o julgamento sobre a suspensão do orçamento secreto.  Na tarde de terça (9), o Supremo formou maioria pela inconstitucionalidade da medida. Agora está em questão se Bolsonaro poderá ou não continuar pagando o aluguel da adesão do Centrão ao seu governo. O fato é que, sem o orçamento secreto que garante o controle de Lira e seus amigos sobre o orçamento, Bolsonaro corre risco de ser despejado e nem terá chance de recorrer à Lei do Despejo Zero.

 

*Magnus Henry da Silva Marques é militante da Consulta Popular, doutorando em direito e assessor parlamentar

**Este é um artigo de opinião e a visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

 

Fonte: BdF Minas Gerais

Edição: Larissa Costa