Análise

Murro em ponta de faca: o fracasso da guerra comercial contra a China

Washington admite que embate comercial com Pequim prejudica sua população

Xangai (China) |
Contêiner chinês em porto de Los Angeles. Guerra comercial fez preços de bens duráveis subirem para os consumidores dos EUA - Mark Ralston / AFP

Desde a conversa online entre Joe Biden e Xi Jinping em 09/09, algo mudou nas relações cada vez menos amistosas entre China e EUA. Nas últimas semanas, uma sequência de eventos apontam para um recuo tático da Casa Branca. Em 24/09, a retirada do pedido de extradição de Meng Wanzhou, chefe das finanças da Huawei, que estava detida no Canadá a mando dos EUA por suposta infração de sanções estadunidenses contra o Irã. Pequim sempre considerou isso um golpe baixo de Washington e o tema fez parte das negociações entre os países nos últimos três anos. Em entrevista ao Financial Times de 28/09, Gina Raimondo, Secretária de Comércio dos EUA, citou um surpreedente Biden dizendo que "não temos interesse em uma guerra fria contra a China".

Em 06/10, a maior autoridade em política externa chinesa, Yang Jiechi, se encontrou por 6 horas com o Assessor de Segurança Nacional dos EUA, Jake Sullivan, na neutra Suíça. Aparentemente, tratou-se de uma reunião mais amena do que o histórico bate boca público no Alaska, em março. Os comunicados oficiais de ambos os lados mantiveram tons críticos, mas também reconheceram o caráter "construtivo" do encontro. Além do aceno sobre uma possível reunião entre Xi e Biden até o fim do ano, foram abertas novas rodadas de negociação sobre a Fase 1 do Acordo de Comércio China-EUA, suspensas há meses. 

Desde então, os líderes das negociações comerciais, o vice-presidente Liu He e a Representante de Comércio dos EUA, Katherine Tai - de família taiwanesa e fluente em mandarim - fizeram duas conversas virtuais. Enquanto Tai disse que os EUA não querem "inflamar as tensões comerciais", mas expôs suas preocupações a respeito da política chinesa de subsídios industriais e cobrou que a China cumpra o acordo para compras de bens estadunidenses, Liu reivindicou que os EUA suspendam as tarifas e sanções impostas aos produtos e empresas chineses. 

Ao mesmo tempo em que acenava com diálogos comerciais, a Casa Branca não parou de fazer movimentos ofensivos contra a China. Para citar somente os dois mais significativos nas últimas três semanas: 1) o novo acordo para venda de submarinos estadunidenses de propulsão nuclear à Austrália, inaugurando uma nova aliança militar batizada de AUKUS, que também agrega o Reino Unido e visa claramente provocar os chineses, e 2) o anúncio da criação de um novo centro da CIA especializado em China, considerada como a "mais importante ameaça geopolítica do século XXI" aos EUA, de acordo com seu diretor William Burns, recriando institucionalmente um aparato típico da guerra fria anti-soviética.

A grande contradição estadunidense, reconhecida pela própria CIA em seu último comunicado, é clara: ao contrário do que acontecia com a URSS, a economia dos EUA é altamente conectada à economia chinesa. Mais que isso, ela depende da economia da China. A verdade sobre essa relação também foi lembrada por Gina Raimondo na mesma entrevista mencionada acima: "não faz sentido falar em desacoplamento (...) queremos acesso à economia deles, eles querem acesso à nossa economia". Essa é a razão do recuo tático da Casa Branca nas últimas semanas. Sob praticamente todos os critérios de análise, a "guerra comercial" que o ex-presidente Donald Trump lançou contra a China em 2018 é, simplesmente, um fracasso.

Isso já vem sendo anunciado por membros do governo Biden nos últimos meses. Em julho, por exemplo, a Secretária do Tesouro Janet Yellen afirmou que as tarifas não respondem adequadamente aos interesses dos EUA e que, em alguns casos, elas "prejudicaram os consumidores estadunidenses". A própria Katherine Tai admitiu em discurso recente que as tarifas não obtiveram o resultado desejado. Basta nos debruçarmos sobre alguns dos estudos publicados desde o ano passado para chegar à mesma óbvia conclusão.

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O principal alvo da "guerra comercial" proposta por Trump era o enorme déficit estadunidense na balança comercial com a China. Mas depois de diminuir entre 2018 e 2019, o déficit teve alta interanual de 7,1%, atingindo US$ 316,9 bilhões em 2020. Já no primeiro trimestre de 2021, o déficit estadunidense chegou a US$ 72,6 bilhões, 78% maior que o mesmo período em 2020 (US$ 40,7 bilhões) e 16,6% maior do que em 2019 (US$ 62,5 bilhões). Outro objetivo de Trump era trazer de volta os empregos aos EUA, mas segundo estudo da Oxford Economics de janeiro desse ano, encomendado pelo Conselho de Negócios EUA-China, a guerra de tarifas contra a China custou cerca de 245 mil empregos estadunidenses

No final do ano passado, a Bloomberg Economics estimava que a guerra comercial já custara US$ 316 bilhões para a economia dos EUA, enquanto uma pesquisa do Federal Reserve Bank of New York em conjunto com a Universidade de Columbia revelou que companhias estadunidenses haviam perdido US$ 1,7 trilhão em valores de suas ações desde a implementação de tarifas em importações chinesas até maio de 2020. Não é à toa que mais de 3.500 empresas dos EUA estão processando seu governo por tamanhas perdas e, há pouco mais de dois meses, pela primeira vez na história, mais de 30 associações empresariais, como a Câmara de Comércio, a Associação da Indústria de Semicondutores, a Mesa Redonda de Negócios e representantes do varejo, agronegócio e indústria se juntaram para pressionar Biden a cancelar as tarifas e retomar as negociações com a China. Somem-se a isso as enormes pressões vindas de Wall Street — que espera faturar montanhas de dinheiro no trilionário mercado financeiro chinês em pleno processo de abertura a companhias estrangeiras — e fica mais fácil compreender os movimentos da Casa Branca nas últimas semanas.

A conta da guerra comercial também tem sido paga pelos consumidores estadunidenses. Eles desembolsaram a maior parte dos US$ 100 bilhões em impostos decorrentes das novas tarifas, mas principalmente passaram a pagar mais caros por bens duráveis. 25% dos US$ 2 trilhões de bens duráveis importados anualmente vêm da China, de modo que as tarifas geram inevitável pressão inflacionária. Após cair 25% entre 1997 e 2020, o índice de preços de bens duráveis disparou 15% desde a pandemia (aí incluídos outras altas de custos, como frete). 

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Contudo, o governo Biden se encontra em uma verdadeira sinuca de bico. Por um lado, sabe que a maior vítima da guerra comercial é a economia e os consumidores dos EUA e que as tarifas se mostraram inúteis como mecanismo de pressão contra Pequim. Isso pode lhe custar votos. Por outro lado, teme sofrer ataques da vigilante oposição republicana e perder apoio popular se parecer que está recuando e deixando de ser "firme contra a China". Isso também pode lhe custar votos nas eleições legislativas de novembro de 2022, em um país onde a histeria anti-chinesa se tornou uma questão de princípio nos corredores de Washington e na mídia, sobrepondo-se à racionalidade econômica. Uma das soluções de compromisso na qual Biden deve apostar é o aumento das isenções de tarifas — como mencionou a representante Tai em discurso da semana passada —, que já funcionam desde o governo Trump e criaram um novo nicho para a poderosa indústria de lobbies de Washington, geralmente beneficiando as grandes empresas, enquanto as menores sofrem para sobreviver com as tarifas de importação. 

É muito provável que a ofensiva estadunidense contra a China cresça daqui para frente. A lista de ações deve ser longa: sanções contra empresas e indivíduos, proibição de acesso a tecnologias de ponta (principalmente chips, o maior ponto fraco chinês),  aprofundamento de alianças militares, campanhas midiáticas em diversos níveis baseadas em fake news, entre outras. Mas o fracasso da guerra comercial dá exemplo de como os EUA enfrentarão inúmeras dificuldades em suas tentativas de contenção do desenvolvimento chinês. O socialismo de mercado da China vem criando mecanismos de resiliência econômica, política e ideológica cada vez mais consistentes, fortalecendo seu protagonismo no cenário global. Daqui para frente, o Império não terá vida fácil.

Edição: Thales Schmidt