O advogado do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes, Rodrigo Mudrovitsch, passou a integrar, em 13 de agosto, a banca dos advogados dos ruralistas no processo referente à tese do marco temporal que tramita na Corte. Uma das entidades que seu escritório representa é a Associação Brasileira dos Produtores de Soja (Aprosoja Brasil), a maior organização de sojicultores do país. O ministro, desde julho de 2018, é sócio da GMF Agropecuária com os irmãos Francisco Ferreira Mendes Júnior, Maria da Conceição Mendes França e o cunhado Ailton Alves França. O cultivo de soja é a atividade principal da empresa, conforme cadastro na Receita Federal.
Com capital social de R$2,226 milhões, a GMF Agropecuária possui sede no Alto Paraguai (MT) e filial em Diamantino (MT) onde nasceu o ministro. A reportagem encontrou uma lista de associados da Aprosoja Mato Grosso – filiada à Aprosoja Brasil – em 2012, que consta o nome de Ailton França, o cunhado e sócio do ministro na GMF. Ao ser procurada, a entidade alegou que o cadastro é sigiloso e que não poderia confirmar se o agricultor ainda é membro. “Tentamos contato com o Sr. Ailton por telefone, mas não obtivemos sucesso. Estamos adaptando nossos processos à Lei Geral de Proteção de Dados, que iniciou sua vigência recentemente, isso inclui o cadastro e as autorizações de compartilhamento de informações dos nossos associados”, informou.
Procurado por meio da assessoria de imprensa do STF, Gilmar Mendes não respondeu às perguntas enviadas pela reportagem.
A Aprosoja Brasil é amicus curiae no processo do marco temporal desde maio de 2020. O termo em latim significa “amigo da corte”, que tem o papel de subsidiar os magistrados com informações para tomada de decisão. A organização é presidida pelo produtor rural Antônio Galvan, alvo de ação no STF. Ele é investigado por patrocinar atos contra o Supremo fomentados pelo cantor Sérgio Reis. Até dezembro de 2020, Galvan ocupou o cargo de presidente da Aprosoja-MT.
Além de Rodrigo Mudrovitsch, aparecem na procuração – apresentada ao Supremo em 23 de agosto – como advogados da organização, seus sócios no escritório Mudrovitsch Advogados e a banca do escritório Marcus Vinicius Furtado Coêlho Advocacia. Os dois escritórios também representam neste processo o Instituto Mato-Grossense do Agronegócio (IAGRO), a Associação Brasileira dos Produtores de Algodão (Abrapa) e a Associação Mato-Grossense dos Produtores de Algodão (Ampa) que entraram juntos, em 13 de agosto, com pedido no STF para participarem como amicus curiae da causa.
Mudrovitsch afirmou à Agência Pública que não está atuando no processo. Segundo ele, seu sócio, Victor Rufino, é quem está tocando o caso “com plena autonomia”. Não estou envolvido nas discussões, nas petições e nos despachos com autoridades”, reforçou. Rodrigo Mudrovitsch fez ainda questão de frisar que atua “academicamente” pela “valorização da questão indígena”. Ele destacou que participa do Grupo Prerrogativas, que na semana passada publicou uma nota contra o marco temporal. “Eu sempre recebi o incentivo do Rodrigo para soltar notas contrárias ao estabelecimento do marco temporal”, afirmou o coordenador do grupo formado por advogados, Marco Aurélio de Carvalho.
Em setembro de 2014, em uma entrevista para o Canal Rural, no entanto, Mudrovitsch defendeu a tese ao comentar sobre o julgamento do STF contrário à demarcação da terra indígena Guyraroká, da etnia Guarani Kaiowá, no Mato Grosso do Sul.
“A rigor a jurisprudência já existe. O que não se concebe é porque existe ainda uma certa recalcitrância dos demais em acolher o entendimento correto do Supremo Tribunal Federal e, não se entender como área indígena, áreas em que há muito tempo já não existe mais posse. Portanto, o que é necessário, é que se compreenda que o que foi fixado no caso Raposa Serra do Sol é o verdadeiro tratado que incide sobre todas as demais situações de igual natureza”, afirmou.
Ao ser questionado se havia mudado de opinião, o advogado disse que sua posição na entrevista foi de “respeito a precedente”. “O Supremo tinha tomado uma decisão em 2009. Eu sou do direito constitucional, então eu acho que o acordo constitucional tem que seguir seus precedentes. O que eu estava dizendo (na entrevista) era que aquele julgamento nada mais era do que o reflexo do que tinha sido decidido lá atrás (no caso Raposa Serra do Sol). Era isso que eu achava ali, não é que eu mudei de opinião. Agora, o Supremo resolveu,11 anos depois, tomar uma nova decisão em regime de plenário com repercussão geral, aquele caso era um caso de turma, individual”, justificou.
Em dezembro do ano passado, Mudrovitsch foi indicado pelo presidente Jair Bolsonaro para concorrer ao cargo de juiz da Corte Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA).
Gilmar Mendes já defendeu marco temporal anteriormente
Uma nota publicada pela Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), a bancada ruralista no Congresso, em 2020, voltou a circular na última semana com o início do julgamento do marco temporal no STF. Nela, a organização diz que “caso não haja, em pleno século XXI, uma data limite de demarcações, qualquer área do território nacional poderá ser questionada sem nenhum tipo de indenização, inclusive áreas de grandes metrópoles, como Copacabana, no Rio de Janeiro”.
Foi esse o argumento, apelidado de “tese de Copacabana”, usado pelo ministro Gilmar Mendes ao evocar o marco temporal durante julgamento sobre a demarcação da terra indígena Guyraroká.
“Claro, Copacabana certamente teve índios, em algum momento; a Avenida Atlântica certamente foi povoada de índio. Adotar a tese que está aqui posta nesse parecer, podemos resgatar esses apartamentos de Copacabana, sem dúvida nenhuma, porque certamente, em algum momento, vai ter-se a posse indígena”, disse o magistrado em contraponto ao relator Ricardo Lewandowski favorável à política de demarcação da Funai. Na ocasião, o ministro disse ainda que “a União não pode amanhã retirar territórios a seu bel-talante, e nós sabemos como isso é feito, esses laudos, laudo da Funai”.
Lewandowski retrucou em defesa da Terra Indígena (TI): “Mas são terras tradicionais, a Constituição assim o diz”. “Terra tradicional é Copacabana, terra tradicional é Guarulhos”, respondeu Gilmar Mendes. A quem o relator rebateu: “O agronegócio quer isso mesmo: expulsa os índios e depois os contrata como bóias-frias. É assim que está acontecendo no Brasil todo”.
Um dia após o julgamento marcado pelo embate entre os ministros, e que favoreceu a demanda de um fazendeiro da região com os votos de Mendes, Cármen Lúcia e Celso de Mello, o advogado Mudrovitsch concedeu a entrevista elogiando a decisão da 2ª Turma da Corte.
Em abril de 2021, o caso foi para o plenário e o STF decidiu por unanimidade em favor dos Guarani Kaiowá ao acolher um recurso movido pelos indígenas, que busca reverter a anulação da demarcação de suas terras.
Mais recentemente, em novembro de 2019, Gilmar Mendes voltou a usar a tese do marco temporal em decisão monocrática contra a Comunidade Indígena Serra da Moça, em Boa Vista, Roraima. A ação foi impetrada pelo estado de Roraima para impedir a permanência dos indígenas na área do assentamento rural Nova Amazônia, bem como a eventual ampliação da terra indígena da comunidade.
“Ultrapassada a preliminar suscitada, cumpre asseverar que este Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da Petição nº 3388, Rel. Carlo Britto, DJ 25.9.2009, o conhecido caso Raposa Serra do Sol, fixou a data da promulgação da Constituição de 1988, 5 de outubro de 1988, como o marco temporal para o reconhecimento, aos grupos indígenas, dos direitos originários sobres as terras que tradicionalmente ocupam, consoante explicitado no seguinte trecho da ementa do acórdão (…)”, afirmou em sua decisão. “(…) Desse modo, tem o Estado de Roraima legitimidade e interesse de agir nesta demanda, visando participar de processo de demarcação de reserva indígena, ainda que inserida em área de propriedade da União, bem ainda discutir judicialmente eventual ampliação daquela”, acrescentou segundo a transcrição da decisão.
“Há problemas de suspeição” na participação de Gilmar Mendes no julgamento do marco temporal, diz professor
O professor de Direito Constitucional da Universidade de São Paulo (USP), Conrado Hübner, avalia que Gilmar Mendes votar no julgamento do Marco Temporal, marcado para esta quinta-feira (2), “é, no mínimo uma extravagância de legalidade muito duvidosa, sem falar no esvaziamento de princípios de ética judicial”. Afinal, segundo ele, do ponto de vista jurídico, “há problemas de suspeição” na participação do ministro na causa.
Ele cita regras previstas nos incisos I e IV do artigo 145 do Código de Processo Civil, que dizem haver suspeição do juiz no julgamento quando ele é “amigo íntimo ou inimigo de qualquer das partes ou de seus advogados” e “interessado no julgamento do processo em favor de qualquer das partes”, respectivamente.
Além de advogado de Gilmar Mendes, Rodrigo Mudrovitsch foi orientado pelo ministro no mestrado concluído em 2013, na Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UNB) e participou da sua banca de doutorado em 2016. Ele ainda é professor do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), do qual o ministro é proprietário e publicou artigos e livros em coautoria com o magistrado. Em seu currículo Lattes, o nome de Gilmar Mendes aparece nove vezes.
“Há elementos para demonstrar que a relação de Gilmar Mendes com esse advogado não é só uma relação estritamente profissional”, afirmou Hübner. Segundo ele, além de ex-aluno e orientando do ministro, o fato de Gilmar “empregá-lo como professor do IDP, sua empresa, revela relações mais densas”. “Quando a gente vai para o inciso quarto, surge uma outra causa de suspeição do ministro. Se ele é de fato empresário do agro também, e como tal representado pelo Aprosoja, seu interesse econômico está ali representado no processo”, acrescentou.
Além da questão legal, ele ainda destacou que há uma questão ética na atuação dos magistrados. “Um juiz precisa fazer tudo que está ao seu alcance para preservar a sua instituição, no caso o STF, de suspeitas de parcialidade. Importa a imagem de imparcialidade, tanto ou mais que sua real imparcialidade”.
“Há respostas conhecidas para essa crítica e tecnicalidades jurídicas invocadas como pretexto para justificar o injustificável. Por exemplo, alega-se que numa ação constitucional não há tecnicamente ‘partes’, que não há ‘interesses subjetivos’ em jogo, entre outras. Precisamos discutir a consistência dessas razões para proteger a instituição do STF de práticas que colocam sua reputação em jogo”, ressaltou Hübner.
Formado em 2003, na UnB, Rodrigo Mudrovitsch defendeu investigados na Lava Jato, como no caso da empresa Odebrecht, em que foi o responsável por várias delações. Mudrovitsch também foi advogado de grandes empresários que tiveram causas no STF, como Eike Batista e Jacob Barata Filho. Ele também atua para políticos, como a deputada federal Gleisi Hoffmann (PT) e o ex-deputado estadual do Mato Grosso José Geraldo Riva, solto pelo ministro Gilmar Mendes por três vezes.