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Coluna

Marco temporal: terra para os povos indígenas ou para o agronegócio devastador?

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Divulgação - APIB
Derrubar a tese do marco temporal é questão de sobrevivência da humanidade

Segundo o censo demográfico do IBGE, de 2010, resistem no Brasil cerca de 817.963 indígenas. Desse total, 502.783 resistem no campo, nas aldeias, e 315.180 foram desterritorializados por terem sido expulsos de seus territórios originários e, por isso, resistem nas periferias das grandes cidades. Só na Região Metropolitana de Belo Horizonte estima-se que existem mais de 10 mil indígenas em contexto urbano. 

Desde o dia 22 de agosto, mais de 6 mil indígenas, de 178 etnias, acamparam em Brasília no Acampamento “Luta pela Vida”, porque a tese do marco temporal está em discussão no Supremo Tribunal Federal (STF), após ter adiado o seu julgamento várias vezes. Com “repercussão geral” reconhecida, definirá se as demarcações de terras indígenas no país continuarão ou não, ou pior, se poderão ser canceladas várias demarcações já feitas. 

A partir de um caso concreto de conflito entre o povo indígena Xokleng e o Estado de Santa Catarina, o julgamento será parâmetro para todas as demarcações de terras indígenas no Brasil. Logo, é muito sério o que está em disputa no STF. 

Falar em marco temporal é uma jogada, uma ficção jurídica

O que é a tese do marco temporal? Trata-se de uma farsa perpetrada no Congresso Nacional pela bancada ruralista em 2009, plantada no STF, durante o julgamento da Terra Indígena (TI) Raposa Terra do Sol situada em Roraima: a inconsistente tese que preconiza que os direitos territoriais dos povos indígenas só teriam validade se eles estivessem em suas terras em 5 de outubro de 1988 - data da promulgação da atual Constituição Brasileira. 

Falar em marco temporal é uma jogada, uma ficção jurídica de quem tem grandes interesses econômicos nos territórios indígenas: a turma do agronegócio, dos madeireiros, garimpeiros, latifundiários e empresários do campo, todos os que são adeptos do ídolo mercado, os que não amam o próximo e nem as próximas gerações, pois só pensam em lucrar e acumular capital, mesmo que deixando terra arrasada com sua agricultura mecanizada para produzir commodities para exportação. 

Marco temporal é marca do atraso, o nome elegante do genocídio

O que os capitalistas pretendem com a legitimação da tese do marco temporal? 

No artigo “O absurdo do ‘marco temporal’ e a violação dos direitos originários”, em parceria com a antropóloga e arqueóloga Alenice Baeta, respondemos a questão acima: “pretendem anistiar os crimes cometidos contra os povos tradicionais relacionadas à escravidão, torturas, confinamentos em pequenos territórios, aprisionamentos, exílios, remoções forçadas, desterros, separação de familiares, assassinatos, apropriações indevidas de territórios tradicionais, desconsiderando assim as noções de reparação histórica, de dívida histórica com os povos originários, de resguardo cultural e imemorial, de direitos congênitos, imprescritíveis, intangíveis e da posse coletiva da terra.”

O argumento do marco temporal é inconstitucional e inconvencional, ferindo, em especial, os artigos 231 e 232 da Constituição, além de desrespeitar a Convenção da Organização Internacional do Trabalho (OIT) n. 169, de 1989, ratificada pelo Brasil, que consagra os direitos culturais e territoriais, bem como a autodeclaração, como instrumento primaz da identidade étnica, além do reconhecimento das diferentes formas de ocupação, manejo e uso da terra.  

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Segundo a teoria do indigenato, a terra é “originária” e, portanto, anterior à Constituição do Brasil, independente da data de comprovação da terra. 

A tese do marco temporal é inconstitucional, porque, perseguidos, massacrados e expulsos, muitos povos indígenas não estavam em seus territórios originais em 5 de outubro de 1988, porque foram arrancados deles. Outros foram arrancados depois, por grileiros, latifundiários, garimpeiros e jagunços. 

Marco temporal serve ao agronegócio, que é devastador ambientalmente, desertificador dos territórios, concentrador da propriedade privada da terra, produtor da epidemia de câncer e da fome, asfixiador da agricultura familiar camponesa agroecológica, exterminador do futuro da humanidade. 

Derrubar a tese do marco temporal se tornou necessário também por uma questão de sobrevivência da humanidade, pois já sabemos que foi o desmatamento que fez eclodir a pandemia da covid-19. Já está comprovado que o agronegócio e seus aliados promovem desertificação dos territórios e desmatamentos sem fim. Já está demonstrado que nos territórios indígenas se pratica preservação ambiental. 

É preciso recordar também que com a demarcação dos territórios indígenas, as terras não passam a ser de propriedade dos povos indígenas, que têm apenas o direito de usufruto não podendo vender a terra. As terras indígenas são da União, bem comum do povo. Portanto, derrubar o marco temporal é também caminho para frear a privatização e a grilagem de terras no Brasil. 

Quem defende que o marco temporal é constitucional? Os ruralistas, os agronegociantes, os garimpeiros, os latifundiários e empresários que, além de ter grandes propriedades na cidade, são também grandes proprietários de terra; a mídia controlada por meia dúzia de famílias riquíssimas, o inominável antipresidente e os bolsonaristas. Diz a sabedoria popular: “diga com quem tu andas e o que defende que direi quem tu és”. 

Quem defende a derrubada do marco temporal pelo STF? Todos os povos indígenas do Brasil, a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), o Conselho Indigenista Missionário (CIMI), o papa Francisco, a Associação dos Juristas pela Democracia, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), juristas e constitucionalistas de renome, os Movimentos Sociais Populares e Ambientais. Enfim, as forças vivas da sociedade. 

Caso não seja derrubada a tese do marco temporal no STF, o Estado não mais demarcará terras indígenas e várias das demarcadas poderão ser desmarcadas e, assim, a ausência de demarcação de terras, causará, no médio e longo prazo, um verdadeiro etnocídio e continuará o genocídio indígena no nosso país. 

Portanto, o justo e necessário é que o STF julgue derrubando a tese do marco temporal, porque é absurdo, inconstitucional e violação aos direitos dos povos indígenas!

Frei Gilvander Moreira é  padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte (MG). 

Artigos mencionados:

Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. § 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições. § 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes. § 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei. § 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.

Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.

 

Edição: Elis Almeida