Em 1997, os Racionais MC’s estavam às portas de celebrar uma década de existência, algo raro no rap nacional. Após três anos sem lançar um disco, o grupo apresentou o LP Sobrevivendo no Inferno. Hoje, 24 anos depois, não há dúvida de que se trata de uma obra iconográfica da música brasileira.
Embora o sentimento seja amplo, a afirmação é do pesquisador Arthur Dantas Rocha, que acaba de publicar o livro Racionais MC`s: Sobrevivendo no inferno pela coleção O Livro do Disco da editora Cobogó.
“É um disco paradigmático, ele tem um peso que permanece no rap nacional. As gerações coladas a esse disco ficaram reféns desse jeito de se dizer as coisas, de uma estética, enfim, era um manual de como o rap deveria ser feito no Brasil”, afirma o escritor.
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Antes do reconhecimento, porém, o grupo teve que enfrentar o preconceito na divulgação do trabalho. "Não tenho medo algum de dizer que o comportamento dos jornalistas com os Racionais e com o disco, era racista. Eles não sabiam como lidar e nem conseguiam achar um lugar para colocar essa música dentro da cultura brasileira. Os Racionais provocaram um curto-circuito na cabeça da crítica cultural daquela época", ressalta Dantas.
Em 2007, a revista Rolling Stone elaborou uma lista com os maiores discos brasileiros de todos os tempos. Sobrevivendo no Inferno figura na 14ª posição, ladeado por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Novos Baianos, entre outros. Em 2015, o prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), em viagem oficial ao Vaticano, presenteou o Papa Francisco com o disco.
Produzido de forma independente, pelo próprio grupo, Sobrevivendo no Inferno chegou rapidamente ao sucesso, alavancado pela MTV, que passou a divulgar o videoclipe da música Diário de um Detento, um clássico do rap nacional que figura nesse disco.
Confira a entrevista com Arthur Dantas Rocha na íntegra:
Brasil de Fato: Por que o Sobrevivendo no Inferno? Existe essa disputa, entre fãs do grupo, se o melhor disco seria Sobrevivendo no Inferno ou Nada Como um Dia Após o Outro Dia.
Arthur Dantas Rocha: Os dois coordenadores da coleção que decidiram o livro. O meu disco preferido era o Nada Como Um Dia Após o Outro Dia. Mas nós estamos falando de dois discos que são marcos na história da música brasileira, são enormes.
Em alguns momentos você fala sobre a tese de que este seria o disco evangélico dos Racionais. Me pareceu que te incomoda essa possibilidade. Estou errado? Ao fim e ao cabo, você defende ou ataca essa ideia?
Eu já tive discussões longas sobre se seria esse um disco evangélico, tenho amigos que são evangélicos que batem muito nessa tecla. Tem um cara, o MC Empada, que pegou o disco inteiro e comparou com passagens da Bíblia. Obviamente, o disco tem elementos evangélicos, mas tem elementos católicos e do candomblé.
Em Jorge da Capadócia, do Jorge Ben, eles fazem uma interferência, com uma saudação que remete ao candomblé, “Ogunhê”. Então, esse disco tem uma religiosidade mais complexa do que apenas evangélica. É uma religiosidade que tenta dar conta das contradições e dos dilemas de uma pessoa que vive na periferia.
Esse é o disco que faz o rap ser levado a sério? Você fala desse olhar de exotificação que a imprensa, principalmente a crítica cultural, tinha sobre a periferia. Essa perspectiva, que separa a arte por sua posição no mapa da cidade, é rompida com o disco?
A relação que eles tiveram com a imprensa foi bem racista. Eu não tenho medo algum de dizer que o comportamento dos jornalistas com os Racionais e com o disco, era racista. Eles não sabiam como lidar e nem conseguiam achar um lugar para colocar essa música dentro da cultura brasileira.
Os Racionais provocaram um curto-circuito na cabeça da crítica cultural daquela época. Talvez tenha tocado rap brasileiro na MTV, antes de Sobrevivendo no Inferno, mas a grande febre foi provocada pelos Racionais, foi muito impactante o lançamento do clipe de Diário de um Detento. Foi avassalador. Mas exceção a Caros Amigos e Notícias Populares, os outros meios de comunicação eram racistas, quando tratavam do rap.
Você fala sobre a falta de cordialidade, um mito brasileiro, no disco dos Racionais. Achei interessante você trazer essa perspectiva. Mas ela serve para o rap nacional, não?
É um disco paradigmático, ele tem um peso que permanece no rap nacional. As gerações coladas a esse disco, ficaram reféns desse jeito de se dizer as coisas, de uma estética, enfim, era um manual de como o rap deveria ser feito no Brasil. Isso acontece até hoje.
Agora, eu particularmente, acho que o rap tem que ser o que ele quiser ser, sem fórmulas, um gênero que deve dizer que o quiser. Há um olhar enviesado, principalmente quando pensamos de enfrentamento ao racismo, que é muito influenciado por esse disco. Havia outros grupos que nessa época já falavam de racismo em suas letras, mas Racionais tinham um peso maior com o povo brasileiro. Quando vamos qualificar essa questão sobre o combate ao racismo no rap nacional, o Sobrevivendo no Inferno é fundamental.
Diário de Um Detento é uma música especial. Se hoje, ainda, é difícil colocar em perspectiva que a tragédia do Massacre do Carandiru foi um brutal ataque aos direitos humanos, independente de quem são as vítimas para você ou para mim, 111 pessoas morreram, imagina cinco após o episódio, em 1997. É a música mais relevante daquele disco?
Esse disco é revolucionário, não? Eu confesso que minha predileção naquele disco alterna, mas Diário de um Detento é, de fato, uma música fantástica. Em qualquer relação das 20 maiores músicas da história do rap nacional, Diário de um Detento entra.
Por mais que nossas predileções escapem para uma música ou outra, dependendo da fase que estamos vivendo, essa música é o marco do disco e eles [Racionais] também pensavam assim, tanto que escolheram ela para que fosse o primeiro clipe das canções do disco. Eles tinham a dimensão que essa música era incontornável, é a música mais poderosa daquele disco.
Muita gente divide o rap nacional em antes e depois de Sobrevivendo no Inferno. A influência do disco é mais na estética proposta, no discurso ou há elementos técnicos que o tornam uma referência histórica?
Eu concordo que é um marco e vou além, determina um antes e um depois para os Racionais também. Se você pegar o Raio-X do Brasil, que é um disco incrível, e pegar o Sobrevivendo no Inferno, parecem dois grupos diferentes. A persona do Brown, na abertura da música Capítulo 4, Versículo 3, que ele já vem estourando. O mesmo Brown no disco anterior não atuava dessa forma.
Eu entendo quando as pessoas falam que esse disco determina um antes e um depois no rap nacional, porque ele coloca a exigência para a produção desse estilo em um nível muito alto. Para fazer rap, depois do Sobrevivendo no Inferno, determinava um saber técnico que talvez estivesse aquém, até então, no cenário nacional.
Os samples são trabalhados de forma toda especial, puta maestria, que também era pouco comum no rap brasileiro. Esse é, também, o primeiro disco dos Racionais na gravadora própria deles, sem ter que responder para ninguém. Além disso, e não pouca coisa, eles tinham o melhor e o segundo melhor MC do país, Mano Brown e Edi Rock, e o Ice Blue, que é um intérprete violento. Por fim, um DJ que está entre os maiores do mundo. Essa seleção vivendo no mesmo tempo é uma dádiva, no mesmo grupo ainda, é um acaso maravilhoso.
Onde você vê, disco ou artista, maior influência desse discurso imposto pelos Racionais em Sobrevivendo no Inferno?
O Dexter é o maior herdeiro do Sobrevivendo no Inferno, foi quem bebeu melhor nessa fonte, e foi além. Com certeza o Dexter, que é um artista que não fica apenas nisso, é um cara superimportante para o rap, foi além dessa referência. O Crônica Mendes também, ele tem uma lírica que é bem influenciada pelo disco. Mas ele também não fica apenas nisso. Mas são nomes que eu lembro agora, de rappers que souberam trabalhar esse legado.
Edição: Leandro Melito