Os homens que não amavam as mulheres há tempos não são ficção, mas continuam a escrever a história na base do terror. Dessa vez, quem protagoniza um capítulo sinistro da narrativa estadunidense é o governador do Texas, Greg Abbot. Depois de ganhar as manchetes por assumir a continuação do muro idealizado por Donald Trump, o republicano volta a ser notícia por basicamente impedir o acesso das mulheres a procedimentos abortivos - um direito garantido por lei.
Desde 1973, quando o caso Roe versus Wade foi julgado pela Suprema Corte dos Estados Unidos, o direito ao aborto seguro e legal passou a ser válido em todo o país. O problema é que, como explica Sean Mehl, diretor associado de serviços clínicos na organização de direito reprodutivo feminino Whole Woman's Health, essa é a base e não o limite da regra.
"Os estados não têm autonomia para anular Roe x Wade, mas podem flexibilizar seu entendimento e impor novas restrições", diz Mehl ao Brasil de Fato.
E foi o que Abbott fez - levantou mais um muro, mas em vez de imigrantes, quer cercar as mulheres e seus direitos. O político ultraconservador aprovou um projeto de lei intitulado "Lei do Batimento Cardíaco" (Heartbeat Bill, em inglês), que proíbe o acesso a qualquer processo abortivo a partir do momento que é identificado uma movimentação cardíaca no feto. Pesquisadores argumentam que essa nomenclatura é muito vaga e há quem entenda que o batimento do coração pode ser detectado nas primeiras seis semanas de gestação.
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"Isso nos coloca em debates científicos e filosóficos, e eu poderia expor uma série de argumentos que mostram que o que vemos ou ouvimos nas primeiras seis semanas não é, necessariamente, o batimento cardíaco do feto, mas acho tudo isso uma distração, porque tiramos o foco da paciente, da mulher", defende Mehl.
Segundo dados da Whole Woman's Health, cerca de 90% dos procedimentos abortivos feitos no Texas acontecem após as primeiras seis semanas de gestação porque boa parte das mulheres sequer sabem que estão grávidas antes disso.
"Por isso acho importante a gente parar com a maquiagem e chamar essa lei pelo nome correto: proibição ao aborto", diz Mehl. "O que o Texas está fazendo é banir o acesso de mulheres a esse direito."
Prevista para entrar em vigor a partir do primeiro dia de setembro, a lei deve ser mais sentida por mulheres negras, pessoas de baixa renda, jovens e aquelas que vivem em áreas rurais, por causa dos obstáculos significativos que já enfrentam para acessar o aborto.
"Quem tem condições vai ter que viajar centenas ou milhares de quilômetros para chegar a outro estado e encontrar o tratamento que, teoricamente, lhes é de direito", continua Mehl.
O governador do Texas defendeu suas medidas sob preceitos religiosos. "Nosso criador nos concedeu o direito à vida e ainda assim milhões de crianças perdem seu direito à vida todos os anos por causa do aborto", disse antes de assinar o projeto.
Sob justificativas semelhantes, senão idênticas, outros 14 estados também adotam regras que praticamente proíbem o aborto. Além da área sob jurisdição de Abbott, os estados do Alabama, Arkansas, Georgia, Idaho, Iowa, Kentucky, Louisiana, Ohio, Oklahoma, Mississippi, Missouri, Dakota do Norte, Carolina do Sul e Tennessee também impõem uma série de obstáculos que tornam o aborto virtualmente impossível.
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A nova regra texana, porém, chama atenção por uma peculiaridade: ela encoraja e até recompensa quem denunciar mulheres ou médicos envolvidos em procedimentos abortivos. Isso significa que qualquer cidadão que acionar judicialmente uma pessoa por violações dessa nova lei de aborto pode receber cerca de 10 mil dólares.
"Isso vai colocar um peso e um trauma enorme nas pacientes, que podem ficar inseguras ao buscar o conselho ou a confidência até de pessoas próximas e amigas", prevê o diretor da Whole Woman's Health. "Isso dinamita todo o sistema de apoio disponível às mulheres porque qualquer um que não concorde com a sua decisão pode mover um processo judicial contra a paciente ou contra os profissionais que trabalham em seu benefício."
Suprema Corte deve derrubar legislação do Texas, avalia professora
A advogada especializada em direito reprodutivo e professora na Universidade do Estado da Flórida, Mary Ziegler, avalia que a legislação do Texas deve ser revogada "até o próximo verão ou pouco depois" pela Suprema Corte, mas pode estimular ações semelhantes de outros governos conservadores.
"Provavelmente veremos estados conservadores, até aqueles que sejam atendidos por cortes estaduais mais liberais, movendo ações semelhantes porque quando desafiamos a constitucionalidade da lei, nos Estados Unidos, somos levados à Suprema Corte – e é isso que eles querem, levar esse debate à instância máxima, onde há a chance e a probabilidade de anulação da lei", prevê Ziegler ao Brasil de Fato.
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Pesquisadora da área, a professora salienta, porém, que isso não necessariamente reflete a opinião pública, já que boa parte da população local se mostra favorável à causa. "No final das contas, o que fica claro é a ironia do status quo americano, determinado por posturas conflitantes", avalia Ziegler. "Dizemos 'sim, o aborto é um direito', mas nós não gostamos; também não queremos proibi-lo, mas queremos regulamentá-lo."
A repercussão da legislação do Texas pode servir de munição para a reeleição de Greg Abbott, que já deixou claro a sua intenção de disputar mais um mandato, e não descarta a possibilidade de ser o indicado republicano à Casa Branca em 2024. A "Lei do Batimento Cardíaco" seria, portanto, sua credencial como a figura ultraconservadora a concorrer à presidência.
Edição: Arturo Hartmann