Feminismo

Artigo | Um 2021 de possíveis avanços na descriminalização do aborto por estupro no Equador

Assembleia Nacional tem até dezembro para analisar projeto de lei elaborado em um amplo debate com diversos movimentos

Brasil de Fato | São Paulo |
Movimento feminista foi às ruas em 2019. Agora, Assembleia Nacional debate projeto de lei para descriminalizar o aborto em caso de estupro - Rodrigo Buendía/AFP

No fim de junho, 28, a Defensoria del Pueblo do Equador apresentou à Assembleia Nacional um projeto de lei para a descriminalizar a interrupção da gravidez em casos de estupro. O documento, elaborado com participação do movimento feminista e da sociedade civil em mesas de trabalho em todo o país, tem 49 artigos que busca garantir a dignidade das pessoas que desejam interromper uma gravidez resultante de estupro, estabelecer as obrigações do sistema nacional de saúde e de equipes médicas, e assegurar o atendimento livre, abrangente, humano, de qualidade, seguro, digno e confidencial.

O projeto é resultado de decisão da Corte Constitucional do Equador de 28 de abril deste ano, que emitiu uma sentença de inconstitucionalidade dos artigos 149 e 150 do Código Penal Integral (COIP). Esse foi o resultado de uma petição de análise do parágrafo 2 do artigo 150 do COIP de 2014 por parte de grupos e organizações feministas (acrescidos depois de apelos amici curiae de mais de 70 pessoas).

Os dois artigos citados definem casos em que a interrupção da gravidez não é punível. Desde 1938, o aborto é permitido no Equador em caso de risco à vida da mãe ou estupro de "uma mulher idiota ou louca", trecho este que foi emendado em 2014 para: "uma mulher que sofre de uma deficiência mental". Dos nove juízes, sete votaram a favor da inconstitucionalidade (duas mulheres e cinco homens) e duas juízas votaram contra.

A Corte, a partir dessa decisão de abril, estipulou um prazo de dois meses para que a Defensoría, com a participação ativa da sociedade civil e em coordenação com os diversos órgãos estatais, elaborasse o projeto depois submetido à Assembleia Nacional no final de junho. A partir de agora, a Assembleia tem seis meses, até dezembro, para debatê-lo.


Mobilização de mulheres ajudou a derrubar artigos / Reprodução

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Na decisão de abril, também foi estabelecido que, da publicação da decisão no Diário Oficial até sua regulamentação por lei, a realização de abortos em meninas, adolescentes e mulheres estupradas não pode ser proibida, e nem os profissionais que os realizarem punidos. Ou seja, a interrupção voluntária da gravidez não pode ser criminalizada nestes casos.

Nesse ínterim, também haverá aplicação do princípio de favorecimento criminal a todos os processos contra mulheres vítimas de estupro processadas por aborto. Isto significa que, dependendo do estágio do processo, o crime pode ser declarado inexistente, o caso encerrado e a mulher imediatamente libertada da prisão. 

Os debates 

Quatro questões críticas foram identificadas para o debate do projeto de lei: tempos, objeção de consciência, exigências e reparações às vítimas. O PL visou então garantir amplos direitos e, portanto, não estabelecer um prazo para o procedimento de aborto, nem demandar a existência de um processo legal ou uma sentença por estupro como requisito para a interrupção da gravidez. 

Assim, o projeto em análise afirma que o testemunho da vítima será suficiente para interromper uma gravidez em caso de estupro. A este respeito, a Defensora del Pueblo, Zaida Rovira, disse que debater isto é "estéril" porque "no Equador temos uma norma expressa de que é a equipe médica que deve apresentar a queixa quando tem conhecimento de um caso de estupro". Todo médico ou médica, quando uma paciente chega, "sabendo que foi estuprada, se está grávida, terá a obrigação de apresentar uma queixa". 

Além disso, Rovira explicou que "a lei não tem a obrigação de determinar o tempo, porque isto tem a ver com a condição da vítima, tem a ver com saúde, trauma e idade; e isto tem que ser determinado entre o pessoal de saúde, a vítima e seus familiares".

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Desafios: violência sexual e aborto

A situação das mulheres equatorianas apresenta desafios semelhantes aos encontrados em outros países da América Latina: menos acesso ao trabalho remunerado, trabalho concentrado no setor informal e no serviço doméstico, salários mais baixos, muito mais tempo gasto no trabalho de cuidado, dificuldade de acesso a cargos gerenciais, bem como violência física, psicológica, sexual e patrimonial. 

Alguns dados sobre violência sexual e aborto no Equador: de acordo com a Pesquisa Nacional sobre Relações Familiares e Violência de Gênero contra a Mulher (INEC, 2019), 32,7% das mulheres sofreram violência sexual, com maior incidência de casos sobre mulheres afrodescendentes. Pela pesquisa, 88,6% das agressões sexuais contra meninas e adolescentes foram perpetradas na esfera familiar e no ambiente próximo das vítimas. Por outro lado, foram 286 relatos do crime de aborto voluntário entre janeiro de 2014 e junho de 2019, a maioria feita pelos médicos que os atenderam, resultando em 134 procedimentos criminais.

A pandemia só agravou a situação. Quanto ao aborto, entre março e julho de 2020, a Fundação Surkuna publicou relatório que aponta que o Ministério da Saúde Pública do Equador informou 127 abortos legais, quase 70% menos em comparação com 2019. Enquanto isso, as iniciativas da sociedade civil para acompanhar as mulheres e meninas em seus abortos registraram um aumento de 25%.

O movimento

No Equador, o movimento feminista e de mulheres conseguiu avanços significativos através de lobby e negociação com o Estado, como no caso da primeira lei de cotas para eleições nos anos 90 ou da igualdade de direitos para mulheres e homens em casamento nos anos 80. 

Mas o Equador viu uma revitalização do movimento feminista nos últimos anos, especialmente a partir das marchas organizadas em torno do slogan #NiUnaMenos a partir de 2015, com o surgimento de uma série de novos coletivos e maior participação das jovens. Desde 2018, uma campanha mais sustentada para a descriminalização do aborto por estupro alcançou maior aceitação da população em geral (60%), enquanto apenas 30% concordaria com a descriminalização irrestrita do aborto, como ocorreu nos últimos anos em Argentina, Uruguai e três estados no México. Em Cuba, isso ocorre desde 1961.

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Esse movimento deu-se a contrapelo de um retrocesso de políticas que ocorreu nos últimos anos. O período do mandato de Rafael Correa (2007-2017), parte da onda progressista na América Latina, caracterizou-se pela implementação de políticas pós-neoliberais, com a melhoria dos serviços públicos e programas sociais, o que determinou progressos substanciais na redução da pobreza e no acesso à educação, especialmente entre grupos tradicionalmente excluídos, como a população indígena e afrodescendente. No entanto, em seu terceiro e último mandato (2013 - 2017), Correa mostrou posições conservadoras em relação a direitos sexuais e reprodutivos. Um exemplo foi a oposição à descriminalização do aborto na reforma do Código Penal Integral em 2014, indo contra decisão das parlamentárias de seu partido. 

Já a partir de 2017, o sucessor de Correa, Lenin Moreno, apenas alguns meses depois do início de seu mandato, traiu o projeto político da Revolução Cidadã pelo qual havia sido eleito. O novo presidente aplicou políticas neoliberais clássicas, como a redução sistemática do orçamento do Estado, a redução de impostos para os mais ricos e a demissão de funcionários públicos, precarizando serviços, o que foi especialmente dramático para o setor de saúde no contexto da pandemia (lembremos as cenas terríveis de cadáveres espalhados pelas ruas de Guayaquil). 


Em abril de 2020, 400 corpos foram recolhidos em casas e ruas de Guayaquil, no estado de Guayas, onde então se concentravam grande parte dos casos de coronavírus no país / Enrique Ortiz/AFP

A reação popular a estas medidas, especialmente a uma alta do preço do combustível devido à retirada do subsídio, foi liderada pelo movimento indígena e atingiu seu auge em outubro de 2019, quando os protestos conseguiram a revogação da medida. Jovens, estudantes e feministas participaram da revolta que durou quase um mês. A repressão a ela foi a mais forte e sangrenta desde o retorno à democracia em 1979: 11 mortos, mais de 800 feridos, incluindo 20 pessoas que perderam os olhos, e mais de 1.300 presos.

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Já em setembro de 2019, no contexto do debate sobre a reforma do Código de Saúde, a Assembleia Nacional não descriminalizou o aborto por estupro devido aos votos contrários da aliança em torno do então presidente, Lenín Moreno, que incluía o CREO (partido do atual presidente, Guillermo Lasso, membro da Opus Dei), o Partido Social Cristão e o Pachakutik (partido do movimento indígena). Foi a partir daí que o movimento feminista seguiu com a estratégia de apresentar perante a Corte Constitucional as vistas de inconstitucionalidade da criminalização do aborto em caso de estupro.

Perspectivas e o caminho a seguir

A primeira reação do atual presidente, Guillermo Lasso, à decisão de abril, ainda antes de assumir o posto, foi surpreendente. Um católico praticante e contra o aborto em várias ocasiões, Lasso disse em comunicado: "Hoje quero expressar meu total respeito pela decisão do Tribunal Constitucional de nosso país. Prevejo, a partir de agora, que isto também será respeitado por todos os funcionários que comporão meu futuro governo". E acrescentou: "acredito especialmente em princípios como a laicidade do Estado e a separação de poderes. Acredito que o caminho para um país melhor é construído com uma democracia que não só acomoda aqueles que compartilham minha visão, mas também aqueles que têm crenças diferentes".

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Estas declarações são difíceis de ler. Antes das eleições, elas teriam sido mais compreensíveis porque poderiam ter sido pensadas como estratégia para ganhar votos. Já eleito, pode ser uma manobra para evitar uma resposta do movimento feminista durante os debates na Assembleia. Agora, sua bancada e seus aliados certamente tentarão modificar o PL apresentado de modo a dificultar o máximo possível o acesso de mulheres e meninas, impondo limites ao tempo para a interrupção da gravidez, reforçando a questão da objeção de consciência ou os requisitos legais, especialmente no caso de pessoas que ainda não atingiram a maioridade. 

No Equador, o presidente tem a capacidade de veto parcial ou total sobre as leis, de modo que ele poderia usá-la para esvaziar a lei após o debate na Assembleia. No entanto, em tese, ele não poderia definir um veto total por causa da sentença do Tribunal Constitucional.


Guillermo Lasso fala durante uma coletiva de imprensa em Quito, em 27 de janeiro de 2021 / RODRIGO BUENDIA / AFP

A maioria da Assembleia, em princípio, seria a favor em relação a esta lei, pois há 47 parlamentares da Revolução Cidadã ("correísmo"), cuja maioria já votou a favor da descriminalização em 2019, 18 da Esquerda Democrática, que tem sido favorável até agora, e 27 de Pachakutik, que expressaram apoio à agenda na campanha eleitoral, mas suscitam dúvidas por um histórico de votos "inconsistentes" nesta questão.

Por fim, podemos esperar que oposição também aconteça na execução dos serviços mesmo com a lei aprovada. A agenda neoliberal de Lasso continuará com a redução dos gastos públicos, privatizações e privilegiando o pagamento da dívida, como fez Moreno. Se os serviços de saúde existentes dificilmente alcançam todos os cantos do país, um novo serviço que necessita de recursos extras e treinamento para o pessoal de saúde e funcionários do sistema judiciário será complicado de pôr em curso. A resistência ativa de uma parte do pessoal de saúde também é de se esperar. Como mencionado, a grande maioria daqueles que denunciam na justiça as mulheres que interromperam a gravidez são os médicos que as tratam. 

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À medida que o movimento feminista se fortaleceu, o mesmo fez a oposição com a campanha continental #ConMisHijosNoTeMetas, que organizou marchas massivas. Também temos a ideia de uma coisa chamada "ideologia de gênero", a nova fachada dos fundamentalistas cristãos e católicos para se opor aos direitos humanos das mulheres e das pessoas LGBTQI+. Durante o processo de aprovação da lei haverá pressão, lobby e mobilizações por parte desses grupos para evitá-lo. 

O panorama é aberto e o movimento feminista deve continuar pressionando na Assembleia e nas instituições estatais para garantir que a sentença do Tribunal se torne uma lei que realmente garanta o direito de interromper a gravidez das meninas, adolescentes e mulheres vítimas de violência sexual.
 

* Antropóloga equatoriana, pesquisadora e militante. Foi assessora do Ministério de Planejamento Nacional, assessora da Secretaria Nacional de Educação Superior, Ciência, Tecnologia e Inovação e Subsecretaria Geral de Educação Superior do Equador.

Edição: Arturo Hartmann