A Colômbia chega aos 211 anos de independência neste 20 de julho com um conflito interno mais vivo do que nunca. Além da greve geral, que já dura mais de dois meses, com 79 mortos e 346 desaparecidos, o governo de Iván Duque desrespeita os Acordos de Paz assinados com as FARC-EP (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia–Exército do Povo) em 2016 e, desde 2018, rejeita a mesa de diálogo com o Exército de Libertação Nacional (ELN).
Nos últimos quatro anos, mais de mil lideranças sociais e ex-combatentes foram assassinados, sendo 60% durante o governo Duque, de acordo com o Instituto para o Desenvolvimento da Paz (Indepaz). Somente em 2021, foram 50 massacres vitimando 189 pessoas, sendo 28 ex-guerrilheiros.
Neste contexto de violência, o ELN insiste mais uma vez na necessidade do diálogo. A guerrilha acaba de mudar seu comando geral, com a renúncia de Nicolás Rodríguez Bautista, vulgo “Gabino”, um dos fundadores da organização, e a ascensão de Antonio García, como primeiro comandante, Pablo Beltrán e Pablo Marín, como segundo e o terceiro comandantes respectivamente.
Por seu lado, o Executivo colombiano substituiu, no dia 24 de maio, Miguel Ceballos do cargo de comissário para a paz, nomeando agora Juan Camilo Restrepo Gómez, que já foi secretário-geral do conservador Partido U, presidente da Associação Colombiana de Bananeiros (Augura) e vice-ministro da Agricultura. Embora seja responsável por conduzir o diálogo entre o governo e grupos insurgentes, o novo funcionário ainda não retomou o diálogo com o ELN.
As negociações começaram em 2017, durante a gestão do ex-presidente Juan Manuel Santos, mas desde agosto de 2018, com o início do governo Duque, as mesas de diálogo estão suspensas.
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Em 2022, o país realizará eleições presidenciais e parlamentares. Segundo a última pesquisa do Centro Estratégico Latino-Americano de Geopolítica (Celag), o senador Gustavo Petro, do Colombia Humana, seria o favorito para ocupar a presidência, com 30,3% das intenções de voto, seguido por Sergio Fajardo, do Compromiso Cidadão, com 14,7% e Juan Manuel Galán, do Partido Liberal, com 7,3%. Já Iván Duque tem hoje rejeição popular na casa dos 76%.
O comandante Aureliano Carbonell, integrante da liderança nacional e representante da mesa de diálogo da ELN, em entrevista ao Brasil de Fato e ao People’s Dispatch, destaca que a expectativa é de que as negociações só avancem quando terminarem os governos do Partido Centro Democrático. Confira a entrevista abaixo.
O que levou o ELN a mudar seu comando?
Aureliano Carbonell: O comandante Nicolás Rodríguez é um dos fundadores da organização. Quando morreu o Comandante Manuel Pérez, em 1998, ele era o segundo na sucessão, e foi quando passou a exercer o primeiro comando. Mas a sua situação de saúde e os cuidados obrigatórios dos quais necessita levam-no a renunciar ao primeiro comando.
Lembremo-nos de que somos uma organização político-militar, que obriga os dirigentes a viver na clandestinidade, na montanha, o que é difícil nas condições do Comandante Nicolás. É por isso que ele decidiu renunciar. A sua renúncia foi aceita, apesar do respeito, carinho e reconhecimento que toda a organização tem por ele.
Quanto às mudanças que isso pode gerar na organização, ainda que cada pessoa tenha características particulares, a organização toma decisões coletivas, com mandatos coletivos e políticas definidas em congressos, em plenárias de lideranças nacionais. A política, em seu sentido geral, continuará sendo definida pela organização.
Como o governo colombiano tratou o ELN nos últimos anos?
Quando Duque se torna presidente interrompe o processo de paz que herdou. Lembremos que quem ganha a presidência é o Centro Democrático, chefiado por Álvaro Uribe, o setor mais bélico da oligarquia colombiana, o mais intransigente, que, mesmo quando se chega ao acordo com as FARC-EP, lideram um plebiscito para rejeitar os Acordos de Paz de 2016. Duque não retomou o processo.
Em janeiro de 2019, seis meses após a posse de Duque, o ELN realizou uma ação contra a Polícia em Bogotá, e isso serviu de pretexto para atrasar ainda mais a reabertura do processo.
Estamos agora em 2021, um ano antes do fim deste governo, e eles continuam insistindo em colocar pré-requisitos para reiniciar as negociações. Essas pré-condições quase sugerem que o ELN pare de ser uma organização insurgente para sentar e conversar. O ELN está disposto a retomar este processo imediatamente, mas sem quaisquer pré-condições.
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Nesse período, fizemos gestos. Em abril de 2020, em relação à pandemia e aos pedidos feitos pelo Secretário-Geral da ONU e pelo Papa Francisco para um cessar-fogo global, o ELN decretou um cessar-fogo unilateral por um mês e propôs ao governo um armistício bilateral.
Isso foi ignorado pelo governo. Em 2019 e 2020, o ELN libertou militares capturados, mas as coisas permaneceram as mesmas.
Já falamos com o delegado do Papa Francisco, com o delegado da ONU que acompanha o processo dos Acordos FARC-EP, e também propusemos à comunidade internacional que criasse um mecanismo de esclarecimento e conciliação, pensando nas questões humanitárias. O que é isso? Em essência, seria criar uma ponte, poderia ser através da igreja, entre o ELN e as comunidades para dialogar e esclarecer situações humanitárias nas quais há algum envolvimento do ELN. Se temos responsabilidade, aceitamos, discutimos e tentamos resolvê-la. Se não a temos, então pelo menos as coisas serão esclarecidas.
Após a mudança do comissário de paz, há expectativa de retomada das negociações para um acordo?
Neste momento o governo tem uma rejeição que está chegando a quase 80%, tem sido submetido nesses dois meses a uma revolta social, a grandes mobilizações, há um descontentamento muito grande no país.
Com esse cenário, não descartamos que sejam feitas simulações de que desejam algo em relação à paz. Mas veja a situação dos acordos com as FARC-EP. Praticamente a única coisa que se fala é na reintegração dos ex-combatentes e as coisas são muito críticas.
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Veja o que acaba de ser mostrado nesses dois meses de mobilizações. O governo e a Comitê Nacional de Paralisação sentaram para dialogar, e o governo tinha uma posição tão intransigente que o Comitê teve que se levantar da mesa de negociações porque não ia a lugar nenhum.
Não esqueçamos que aqueles que agora estão no governo se opuseram radicalmente aos processos de paz. Apesar disso, o ELN está disposto, e o expressou publicamente, a restabelecer uma mesa de negociações.
Um ponto chave da agenda que assinamos com o governo de Juan Manuel Santos é a participação da sociedade, já que consideramos que, num processo de paz, isso é algo vital, uma prioridade.
Não é um processo do ELN, para nos reconhecer como uma organização. Um processo de paz deve atingir diretamente as realidades do país e todos os fenômenos que deram origem ao levante armado.
Como a guerrilha analisa a greve geral? Como você avalia esses 2 meses de manifestações?
O que aconteceu nesses meses, desde finais de abril, maio e junho, é algo excepcional. As lutas populares deram um salto na Colômbia. Houve mobilizações quase permanentes em todas as cidades do país, houve momentos com mobilizações em metade dos municípios, mais ou menos em 500-520 cidades.
A greve teve o apoio de muitos setores da sociedade, mas também houve coisas muito particulares: às vezes os bloqueios de estradas chegavam a mais de mil. Com a característica de que não só os camponeses e trabalhadores do transporte se mobilizaram, também setores urbanos saíram a bloquear vias centrais do país.
Igualmente pontos de concentração permanentes foram criados em várias cidades, como Cali e Bogotá, e foram chamados de "pontos de resistência".
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Também foram desenvolvidas as primeiras linhas, que são grupos de jovens que tentam se colocar na linha de frente para defender o restante da mobilização, com escudos feitos à mão, com capacetes, com óculos de proteção para os gases.
Outro aspecto relevante desses meses de revolta social é o destaque que os setores urbanos, as pessoas das cidades, têm tido.
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Na Colômbia, está ocorrendo um processo, um ciclo de ascensão das lutas sociais iniciado há 13 anos.
Começa com o que ficou conhecido como "Minga Indígena", no departamento de Cauca, em 2008, mas depois há um forte movimento estudantil em 2011. Depois em 2013, 2014, 2016, novamente ações de grande importância são repetidas pela massa dos povos indígenas, bem como as greves agrárias
Nestes anos, o principal fator de mobilização foi a área rural. É a partir de 2017 que o urbano começa a atuar de alguma forma. Já em 2018 e 2019 ganha mais dimensão com as mobilizações estudantis. Agora em 2021 há um grande protagonismo urbano, também com uma grande presença de setores rurais.
O outro lado que deve ser destacado nestes meses de convulsão social é a repressão brutal.
Já é muito visível e verificável a violação dos direitos humanos pelas forças de segurança. A forma violenta como o Estado, o governo, as classes dirigentes respondem aos protestos sociais, às reivindicações do povo.
Há até um caso muito emblemático de uma menina, de uma jovem da cidade de Popayán, que gravou um vídeo com o celular afirmando que foi abusada sexualmente pela polícia que a havia detido e, por isso, se suicida.
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O Ministério Público, entidade vinculada ao governo sem qualquer tipo de independência, admitiu durante a visita da Comissão Interamericana de Direitos Humanos que havia registrado 84 pessoas assassinadas. Se o Ministério Público assumiu essa cifra, é de se esperar que a situação seja muito mais grave.
Portanto, o componente de repressão, violência, brutalidade, violação dos direitos humanos, um tratamento ditatorial do protesto social, foi evidenciado perante o mundo nestes meses. O comportamento da classe dominante neste país foi exposto ao mundo, já que o que eles faziam com maior impunidade no campo, durante todas essas décadas de conflito armado, agora foi visto nas cidades.
2022 é um ano eleitoral na Colômbia e o uribismo parece dividido ou pelo menos enfraquecido após a greve. Isso favorece as negociações de paz com o ELN?
O uribismo é o setor mais de ultra-direita e atualmente está no comando do governo. Digamos que esteja com maior dificuldade e que esteja num momento de recuo. Isso se expressa pela situação atual de crise e na sua rejeição. O que se espera é que as eleições presidenciais sejam ganhas por posições oligárquicas menos extremistas ou pelo candidato de centro-esquerda Gustavo Petro.
Então sem dúvida, sim, esse será um novo governo de outro caráter, ainda que oligárquico, diferente do governo Duque e do Uribismo. Favorecerá mais os caminhos da busca pela paz. E é lógico que, se for um governo de centro-esquerda, o caminho parece um pouco mais provisório.
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De qualquer forma, o fator determinante para que se imponham novos rumos de negociações no país, de busca pela paz com a insurgência, é a atual crise da Colômbia. A crise em que se encontra o sistema de dominação. O descontentamento social que hoje é muito mais amplo do que em outras épocas e, logicamente, a ebulição social que tende a continuar nos próximos meses.
Isso está impondo mudanças às classes dominantes e setores oligárquicos, enfraquecendo a extrema-direita e abrindo possibilidades para avançar em processos de paz e mudança no país.
Edição: Arturo Hartmann