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“Fui asfixiado, não conseguia respirar”, denuncia haitiano agredido em fábrica da Brasil Foods

Em entrevista exclusiva, trabalhador relata violência, xenofobia e racismo dentro da empresa

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Vídeos com imagens das cenas de violência no pátio da fábrica, gravados por outros trabalhadores, começaram a circular nesta semana nas redes sociais - Reprodução / Vídeo

O haitiano Djimy Cosmeus, 28, quase se tornou um caso como o de George Floyd, morto em maio de 2020, em Minneapolis, nos EUA, após ser sufocado em abordagem policial.

Ou um caso similar ao de João Alberto Silveira Freitas, espancado até a morte por seguranças privados em uma loja do Carrefour em Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, no mesmo ano.

No dia 8 de julho, Cosmeus foi agredido por três seguranças privados dentro da fábrica da Brasil Foods (BRF), na cidade de Chapecó (SC). O trabalhador, contratado em fevereiro pela empresa, relata ter sofrido racismo e falsas acusações pelo supervisor.

Vídeos com imagens das cenas de violência no pátio da fábrica, gravados por outros trabalhadores, começaram a circular nesta semana nas redes sociais. Nesta quinta-feira (15), entidades sindicais lançaram uma nota de repúdio à situação.

“Além das lesões causadas pelo exagero da força, houveram as humilhações e constrangimento frente a um grande número de colegas de trabalho, que também diziam para os seguranças pararem com a violência que estava sendo cometida”, diz a nota, ao cobrar sindicância por parte da BRF.

Eu gritava para alguém fazer alguma coisa, eles gritavam que estavam me disciplinando. Eu gritei que esse homem iria me matar, eu sentia dores nas costas e fui sendo asfixiado.

Em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato, Cosmeus explica que no dia 8 de julho, próximo às 14h, foi chamado ao escritório pelo supervisor, que deu a ele uma advertência para ser assinada, alegando que o trabalhador não havia comparecido na fábrica no dia anterior.

Ele nega o fato e explica que entrou para trabalhar no dia 7 de julho, às 12h, tendo encerrado seu expediente às 21h37.

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Trabalhadores da fábrica, que pediram anonimato, confirmam que Cosmeus cumpriu normalmente a sua jornada.

A reportagem do Brasil de Fato não apenas ouviu trabalhadores, como teve acesso ao Boletim de Ocorrência (B.O) realizado horas depois da agressão, assim como a documentos de contrato do trabalhador na empresa.

Entenda o caso

No dia 8 de julho, Cosmeus comenta que iniciou sua jornada por volta das 12h10 e parou às 13h45 para um intervalo de descanso.

O supervisor da equipe, conhecido pelo nome “Moisés”, o chamou até o escritório dentro da empresa e exigiu que ele assinasse uma advertência, alegando que o funcionário não havia comparecido no dia anterior.

Cosmeus se recusou, explicando, como relata, que havia comparecido à empresa e que a informação poderia ser confirmada com outros trabalhadores. Por dificuldades causadas pelo idioma, ele pediu que um trabalhador pudesse intermediar a conversa na fábrica, o que lhe foi negado.

Tendo se recusado a assinar a advertência, o supervisor pediu que Cosmeus fosse retirado do local, mas o trabalhador explica que não poderia deixar o posto, pois dependia dele para sobreviver.

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Por ordem do supervisor, seguranças privados da empresa intervieram e passaram a agredir o trabalhador.

Como consta no relato de Cosmeus, via boletim de ocorrência, um dos seguranças o empurrou e pisou em seu pescoço para imobilizá-lo. Outros dois deram chutes e socos enquanto estava no chão.

No momento em que outros trabalhadores começam a filmar a ação, Cosmeus estava no pátio da empresa, com um segurança apoiando um joelho sobre suas costas.

“Eu gritava para alguém fazer alguma coisa, eles gritavam que estavam me disciplinando. Eu gritei que esse homem iria me matar, eu sentia dores nas costas e fui sendo asfixiado. Eu dizia para me soltarem, eu não conseguia respirar”, conta Cosmeus, que foi no mesmo dia à delegacia registrar a ocorrência.

Questionada sobre os fatos ocorridos no interior da empresa, a BRF disse que “Em respeito ao colaborador, não cabe à empresa expor os fatos específicos que geraram a suspensão” do trabalhador.

Pressão sindical

Entidades sindicais estão reunidas nesta quinta-feira (15) no Ministério Público do Trabalho de Santa Catarina (MPT-SC) para apurar a situação e dar desdobramento ao caso. Elas também disponibilizaram equipe jurídica para acompanhar Cosmeus.

"O que se vê nas imagens não tem justificativa. Como sindicato, afirmamos que não vamos tolerar esse tipo de agressão. Nenhum trabalhador deve ser tratado com violência, em nenhum contexto. Isso é inaceitável”, comenta o presidente do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias das Carnes e Derivados de Chapecó e Região (Sitracarnes), Jenir Ponciano de Paula.

Presidente da Confederação Brasileira Democrática dos Trabalhadores na Indústria da Alimentação (Contac), Nelson Morelli, defende que a BRF precisa ser responsabilizada.

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“Intolerância, xenofobia, racismo e violência são situações que sempre existiram contra trabalhadores, mas nessa era bolsonarista, a retirada de direitos e o ódio se acentuam com maior crueldade. A empresa precisa ser responsabilizada pelo que aconteceu, que poderia ter levado o trabalhador à morte”, ressalta o dirigente.

A BRF afirma que abriu sindicância para apurar a situação e que os seguranças e o supervisor envolvidos no caso foram afastados.

Cosmeus também foi afastado e, segundo a empresa, “sem prejuízo à sua remuneração”. A empresa diz que repudia “toda e qualquer forma de violência e discriminação dentro ou fora de suas instalações”.

Eu sou um homem negro. A empresa foi racista, foi violenta e atacou de frente os direitos humanos. Isso tudo poderia ter me levado à morte.

Migrantes

A agressão sofrida por Cosmeus não é uma situação de violência isolada, avalia a cientista social Erika Butikofer, após ter acesso aos vídeos com as imagens da fábrica.

“Agressões contra imigrantes têm sido constantes em diversas regiões do Brasil, mas a maioria deles tem medo de denunciar os atos, justamente porque muitas dessas violações acontecem nos locais de trabalho, como neste caso”, avalia Erika, mestranda pela Universidade Federal do ABC e uma das fundadoras do Coletivo Conviva Diferente, entidade que trabalha com migrações na cidade de São Paulo.

De acordo com a pesquisadora, desrespeito, hostilidades e ofensas físicas e verbais têm sido queixas muito comuns também de haitianos que moram na capital paulista.

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“Há de se combater essa violência estrutural que temos no país para com o imigrante, principalmente negro e originário do Sul Global”.

As afirmações de Erika se confirmam com os depoimentos de Cosmeus. Segundo a denúncia do trabalhador, ele sofreu racismo e xenofobia. Minutos antes da agressão, o supervisor disse que Cosmeus “deveria mesmo voltar ao seu país para arrumar trabalho”, ao invés de permanecer no Brasil, como relata em entrevista.

Racismo

“Eu sou um homem negro. A empresa foi racista, foi violenta e atacou de frente os direitos humanos. Isso tudo poderia ter me levado à morte”, destaca Cosmeus.

Cosmeus não é um caso à parte. Dados do anuário 2021 do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), divulgados nesta quinta-feira (15), demonstram que a letalidade policial é alta e que 78,9% das pessoas mortas pela polícia são negras.

“A característica do racismo é ser estrutural. O racismo é um elemento de organização das relações sociais, ele está presente nas relações sociais, mesmo de forma inconsciente, o que não livra de responsabilidade", expõe o advogado e professor da Fundação Getúlio Vargas (FGV) Silvio Almeida.

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"Ele se torna um elemento de normalização das relações sociais, de tal sorte que agressões racistas, que ausência de pessoas negras em certos espaços e que o tratamento contra pessoas negras, seja de desprezo ou violento, não é tido como algo excepcional, mas como algo normal”.

A partir do que ocorreu na BRF e das denúncias do trabalhador haitiano, Almeida explica que o racismo estrutural precisa de instituições diversas para se reproduzir. “O papel das instituições é justamente de criar subjetividades, ou seja, de formar a consciência e o sentimento das pessoas. A gente aprende isso na escola, nas instituições religiosas, na família", argumenta.

"A gente aprende a ser sujeito, também aprende sobre o momento de trabalho, sobre as empresas que trabalham com processos automáticos, com relações de poder. Quando se têm relações de poder, no nível institucional, elas são atravessadas pelo racismo”, completa.

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Pesquisador do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Dennis Pacheco reforça que o Brasil carrega consigo uma herança pós-colonial caracterizada pela violência como linguagem privilegiada para a resolução de conflitos.

“A utilização privada da violência enquanto instrumento de punição e controle de corpos negros é também parte dessa herança. Como nos lembra o caso emblemático de João Alberto Silveira Freitas, espancado até a morte por seguranças de um supermercado do grupo Carrefour em Porto Alegre, e agora a violência contra o trabalhador haitiano Djimy Cosmeus, o racismo é elemento central da mortalidade violenta no Brasil”, afirma.

Para Almeida, as empresas, bem como outras instituições, devem estar alertas sobre a questão do racismo.

“As instituições devem se tornar mais conscientes em relação ao fato de que o racismo é um dado presente nas relações e que não tratar do racismo faz com que ele se reproduza, inclusive das formas mais violentas”, conclui.

*Colaboraram Dieudonné Kabaka Hompa e Sidevaldo Miranda Costa.

Edição: Leandro Melito