O tempo fechou um pouco mais para o presidente Jair Bolsonaro nesta semana. A Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Covid ficou marcada pelo suposto esquema de fraude na negociação para a compra de doses do imunizante Covaxin entre o Ministério da Saúde e a empresa Precisa Medicamentos responsável pela venda no Brasil do imunizante produzido pelo laboratório indiano Bharat Biotech.
Os responsáveis por levantar a denúncia foram o deputado federal Luis Miranda (DEM-DF) e o irmão, de mesmo nome, Luís Ricardo Fernandes Miranda, chefe da divisão de importação do Ministério da Saúde, que compareceram à CPI nesta sexta-feira (25).
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O deputado afirmou que o Bolsonaro teria sido alertado sobre o esquema de fraude, no dia 20 de março, quando os irmãos foram pessoalmente até o presidente levar a documentação que prova o esquema. O encontro não consta na agenda do presidente, mas Miranda, em seu perfil no Twitter, publicou uma foto ao lado de Bolsonaro e afirmou que ambos tratavam de “assuntos que são importantes para o Brasil”.
Antes de se encontrar com o presidente, Luis Miranda enviou mensagens a um assessor do presidente falando sobre um “esquema de corrupção pesado” dentro do Ministério da Saúde para a aquisição das vacinas.
“Tenho provas e testemunhas. (...) Não esquece de avisar o PR [presidente]. Depois não quero ninguém dizendo que implodi a República. Já tem PF e o c****** no caso. Ele precisa se antecipar”, afirmou o parlamentar nas mensagens. Logo depois, afirmou que “estava a caminho”.
Aos senadores, o deputado disse que após a denúncia feita ao presidente, nunca mais conseguiu falar com o mesmo.
Segundo tanto Ricardo quanto Luis Miranda, Bolsonaro prometeu acionar a Polícia Federal para investigar o caso. Tanto o capitão reformado quanto a PF, no entanto, não deram um retorno ao parlamentar, como alegou o próprio.
Além de Bolsonaro, o então ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni também recebeu as documentações acerca da denúncia da fraude. Depois de o caso ser revelado, Lorenzoni ameaçou, publicamente, Luis Miranda e seu irmão durante coletiva de imprensa convocada às pressas, no Palácio do Planalto, nesta quarta-feira (23).
"Luis Miranda, Deus está vendo. Mas o senhor não vai só se entender com Deus, vai se entender com a gente também. E vem mais. O senhor vai explicar e o senhor vai pagar pela irresponsabilidade, pelo mau-caratismo, pela má-fé, pela denunciação caluniosa e pela produção de provas falsas", disse Onyx.
Pressão “atípica”
No dia 31 de março, Luis Ricardo afirmou em depoimento ao Ministério da Saúde federal (MPF) – na esfera de um inquérito que já investigava se houve favorecimento na negociação, antes da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) – que sofreu uma “pressão atípica” para assinar o contrato de importação do imunizante, dentro do Ministério da Saúde.
"A Covaxin tem recebido muita mensagem de vários setores do Ministério, da secretaria executiva, da própria coordenação do trabalho e de outros setores, perguntando o que falta para fazer essa importação, inclusive sábado e domingo, e sexta, às onze horas da noite”, afirmou Ricardo em depoimento ao MPF, conforme divulgado pelo jornal Folha de S. Paulo.
Segundo Ricardo, a pressão era no sentido de que a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) abrisse uma exceção para acelerar a tramitação da aprovação da vacina. No mesmo dia do depoimento ao MPF, a Anvisa negou os pedidos de uso emergencial e importação para a vacina, por falta de documentação que atestasse a segurança e a eficácia do imunizante.
“O que tem de gente pressionando… Aí a gente já fica com o pé atrás”, afirmou Ricardo em um áudio enviado ao seu irmão por WhatsApp. O servidor afirmou que não observou nenhuma outra incoerência em contratos de outras vacinas, apenas em relação à Covaxin.
O servidor da pasta citou o tenente-coronel do Exército, Alex Lial Marinho, ex-coordenador-geral de Logística de Insumos Estratégicos, como o suposto responsável por pressionar a Anvisa a aprovar a importação.
Marinho, que era subordinado a Élcio Franco, ex-braço direito do ex-ministro Eduardo Pazuello, foi exonerado no último dia 8, pelo então ministro Marcelo Queiroga.
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No dia 16 de junho, a procuradora Luciana Loureiro Oliveira enviou partes do processo para a esfera criminal do MPF.
"A omissão de atitudes corretivas da execução do contrato, somada ao histórico de irregularidades que pesa sobre os sócios da empresa Precisa e ao preço elevado pago pelas doses contratadas, em comparação com as demais, torna a situação carecedora de apuração aprofundada, sob duplo aspecto, cível e criminal", escreveu Oliveira.
Assim como o empresário Carlos Wizard, aliado de Bolsonaro na defesa da cloroquina e do tratamento precoce, fugiu da CPI na semana anterior.
Nesta, tudo estava como antes: Francisco Emerson Maximiano, o sócio da empresa Precisa Medicamentos, que representa o laboratório indiano Bharat Biotech, não compareceu à comissão na quarta-feira (23). Mas justificou, de última hora, sua ausência, devido ao cumprimento de isolamento social, uma vez que chegou da Índia no dia 15 de junho. Seu depoimento foi adiado para o dia 1º de julho.
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Cronologia dos fatos
Em agosto de 2020, o Ministério das Relações Exteriores recebeu um telegrama da embaixada brasileira em Nova Délhi, na Índia, apresentando o preço de US$ 1,34 por dose.
No entanto, em fevereiro deste ano, o Ministério da Saúde, até então liderado pelo general Eduardo Pazuello, concordou em relação ao pagamento de US$ 15 por dose. No total, foram empenhados (reservados para pagamento) R$ 1,61 bilhão na compra de 20 milhões de doses.
A título de comparação, o imunizante produzido pela farmacêutica estadunidense Pfizer foi comprado de US$ 10 a US$ 12 por dose; a dose da vacina da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), produzida em parceria com o laboratório AstraZeneca e a Universidade de Oxford, entre US$ 3 US$ 5; da Janssen, a US$ 10; e da CoronaVac, a aproximadamente US$ 12.
Em seu depoimento à CPI, Pazuello afirmou que um dos motivos para que o Brasil recusasse as 70 milhões de doses da Pfizer em 2020 seria o preço “exorbitante” da vacina.
::Pazuello é pego em mentira sobre o TCU e diverge da Pfizer em depoimento::
O contrato com a empresa foi negociado no dia 25 de fevereiro, antes de a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) dar o aval para a importação da vacina e de o resultado do ensaio clínico de fase 3, de testes em humanos, ser divulgado.
Na data do anúncio da compra, no dia 26 de fevereiro, o Ministério da Saúde informou que as primeiras 8 milhões de doses chegariam em março, 8 milhões em abril e as últimas 4 milhões em maio. Até o momento, nenhuma dose da Covaxin chegou ao Brasil. Segundo o Ministério da Saúde, o contrato para a compra de 20 milhões de doses ainda não foi pago.
A aprovação da Anvisa veio apenas no dia 4 de junho, e com restrições: somente o uso dos quantitativos, 4 milhões de doses, e sob condições controladas, de acordo com as determinações da própria agência.
400 mil mortes evitáveis
O relato dos irmãos Miranda acerca do suposto esquema de corrupção dentro do Ministério da Saúde sucedeu os depoimentos do epidemiologista e ex-reitor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), Pedro Hallal, e da médica e ex-diretora-executiva da organização Anistia Internacional, Jurema Werneck.
O depoimento de ambos foi antecipado em detrimento do adiamento da presença do ex-assessor para assuntos internacionais da Presidência da República, Filipe Martins.
Werneck e Jurema trouxeram mais elementos para sustentar uma das principais linhas de investigação dos senadores: o peso das ações do governo federal, capitaneado por Jair Bolsonaro (sem partido), nos números da pandemia de covid-19.
Segundo ambos, o Brasil poderia ter evitado cerca de 400 mil mortes, caso medidas não farmacológicas, como uso de máscara e isolamento social, fossem adotadas rigorosamente, e as compras de vacinas, antecipadas.
“No dia de ontem (23 de junho), uma de cada três pessoas que morreram por covid no mundo foi no Brasil, que tem 2,7% da população mundial. Quatro a cada cinco mortes são em excesso. Se estivéssemos na média, nós teríamos poupado 400 mil vidas no Brasil”, afirmou Hallal.
Em seguida, Werneck afirmou que “ao não fazer as previsões e os investimentos necessários, não há dúvida de que o Ministério da Saúde falhou terrivelmente. Poderia ter sido diferente. E segue falhando”.
O governo Bolsonaro poderia ter evitado pelo menos 80.300 mil mortes se tivesse fechado o contrato oferecido pelo Instituto Butantan em outubro de 2020 para a compra de 100 milhões de doses da Coronavac, que seriam distribuídas aos brasileiros até maio deste ano, de acordo com um estudo realizado por Pedro Hallal, que também foi coordenador do Epicovid-19.
O cálculo, que tem uma margem de erro entre 80.300 e 82.700 óbitos, também estima que 174.642 internações em Unidades de Terapia Intensiva (UTI) poderiam ter sido evitadas. A Coronavac, produzida em parceria com o laboratório Sinovac, começou a ser aplicada no dia 17 de janeiro.
Soma-se a isso a negativa dada pelo governo federal a uma oferta do laboratório estadunidense Pfizer, em agosto de 2020, que teria disponibilizado ao país mais 4,5 milhões de doses entre dezembro do ano passado e março deste ano. Se aceita a oferta, cerca de 14 mil óbitos teriam sido evitados. Juntas, Pfizer e CoronaVac, se distribuídas anteriormente aos brasileiros, poderiam ter evitado 95.500 mortes.
A metodologia utilizada pelo professor, que foi duramente questionada pelos senadores da Tropa de Choque de Bolsonaro, se baseou em algumas premissas, como um terço da população com anticorpos, letalidade do coronavírus de 1% e eficácia da CoronaVac de 50% e da Pfizer de 94%.
O tempo da terra plana não é o mesmo da terra redonda
A tese mais defendida pelo deputado, médico e ex-ministro da Cidadania, Osmar Terra, foi contra o isolamento social, durante o seu depoimento aos senadores, na terça-feira (22).
O “assessor” de Jair Bolsonaro, como denominou o próprio capitão reformado, afirmou que não existe “nenhum trabalho científico mostrando que quarentena funciona” como medida para conter o avanço do novo coronavírus. O teor negacionista do depoimento já era esperado.
O deputado federal ainda afirmou que se o isolamento social “funcionasse, não teríamos a maior parte da mortalidade de 2020 dentro de asilos, pessoas que nunca saíram e acabaram pegando de alguma maneira, através dos funcionários, e vindo a falecer”.
Fato é, no entanto, que o Brasil nunca atingiu a taxa de isolamento social necessária para conter o vírus, que é de 70%. O pico foi de 62,2%, no dia 22 de março, 11 dias depois de a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretar a propagação da covid-19 como pandemia, segundo o Índice de Isolamento Social, do Inloco.
O deputado, no entanto, ignorou os dados por diversas vezes e voltou a afirmar que o isolamento social “não funciona”. Em suas palavras, “todas as pandemias tiveram um curso com medidas não farmacêuticas que não foram a de trancar as pessoas dentro de casa. Nunca houve isso na história”.
Mas, em um artigo publicado no próprio site da Biblioteca Nacional, do governo federal, há a sinalização para o isolamento social como uma das “medidas que foram utilizadas por diversas vezes indiscriminadamente ao longo da história como recursos de controle de contaminação de doenças infecciosas”.
O ex-ministro ainda afirmou que a contaminação se dá, principalmente, em ambiente familiar, o que, por sua vez, também endossaria o argumento contra o isolamento social.
“Chegando em casa, a pessoa tira a máscara, senta em grupos pequenos e vai contaminando todo mundo”, disse. Em outro momento, disse: “Se está trancado ou não dentro de casa, o vírus se espalha.” De fato, parece que o tempo na terra plana não é o mesmo da terra redonda.
Edição: Leandro Melito