Sistema prisional

Em meio ao caos das prisões durante pandemia, projeto leva apoio mental a detentas

Com o avanço da covid-19 pelos presídios, visitas familiares foram suspensas, enquanto a fome e o friou aumentaram

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Um quarto da população carcerária feminina do país está confinada em estabelecimentos que sequer possuem posto de saúde - Divulgação / Pastoral Carcerária

Um símbolo da violação dos direitos humanos no país, o sistema prisional vive um dos seus piores momentos, devido ao avanço da pandemia.

Sem estrutura básica, como acesso à água limpa e atendimento médico constante, já são 85 mil casos oficialmente registrados de contaminação por covid-19 nas prisões do país, que crescem de forma exponencial.

Os números, atualizados até o último dia 15 pelo Conselho Nacional de Justiça, mostram também que o índice de óbitos no cárcere aumentou 16,5% só no último mês no Brasil.

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Houve pouco investimento dos governos estaduais para combater a pandemia nas unidades prisionais, e o  governo federal destinou R$ 3 milhões para atender todo o sistema.  

Uma das medidas adotadas para conter a disseminação do vírus foi a suspensão das visitas. O isolamento ainda mais radical dos detentos tem levado à piora da saúde da população carcerária em geral - já que a maior parte depende dos alimentos, roupas de frio e até medicamentos doados pelos familiares - e mais ainda especificamente entre os apenados que sofrem com qualquer tipo de infecção ou síndrome, incluindo a covid, antes ou depois de testar positivo para o vírus.

“Os relatos da família é que as pessoas presas perderam muito peso, estão com saúde precária, têm muito problemas de pele e problemas respiratórios. A saúde piorou demais”, afirma Carolina Diniz, advogada do instituto Conectas Direitos Humanos

Ela conta que a população prisional já tem uma série de comorbidades, e que muitas delas não são declaradas por médicos, devido à precariedade do serviço médico que o Estado presta em suas unidades carcerárias. “Essa é uma situação frágil por si só, e no momento da pandemia, as pessoas ficam trancadas o dia inteiro. A maioria dos presídios estão com banho de sol com menos de 2h por dia”, afirma Diniz.

“Talvez estejamos no momento mais crítico de violação , à vida, à integridade física e à dignidade humana. A vida dessas pessoas está em risco”, completa a advogada da organização, que atua há décadas no enfrentamento da violência institucional no sistema prisional.

Mulheres: violação em dobro

Além dos impactos à saúde física, a saúde mental é outro grande desafio do cárcere com o distanciamento total da família. Seja qual for o caso, em tempos de pandemia, são as mulheres as mais vulneráveis no sistema, porque com ainda menor a estrutura mínima de sobrevivência digna garantida pelo Estado.

Segundo levantamento do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania, um quarto das detentas do Brasil estão em unidades que sequer possuem módulos de saúde.

Em prisões assim, a detenta acometida pela covid vai ficar em convívio com as demais enquanto apresenta todos os sintomas antes de ser testada, para só então ser removida para algum tipo de atendimento, em alguns casos já com baixa oxigenação e até quadro de intubação. Até chegar neste ponto, viveu a tortura de não conseguir respirar, com febre alta e fome dentro de uma cela lotada e sem poder receber visita e algum tipo de cuidado nem aos finais de semana. 

Em muitos desses casos, mortes causadas pelo novo coronavírus nem mesmo entram nas estatísticas oficiais.

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“As mulheres presas sofrem em dobro, sempre. Elas, que já não recebiam visitas, muito menos que em comparação aos homens, estão totalmente abandonadas. É crítica a situação que estão vivendo”, denuncia Diniz.

Segundo dados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen), 70% das mulheres presas são mães e foram encarceradas por crimes não violentos, sendo a maioria relacionados ao tráfico de pequenas quantidades de drogas ou furtos de baixo valor patrimonial.

Já é pacificada a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal de que na grande maioria desses casos a prisão domiciliar já deveria ter sido concedida pelos juízos de execução de cada estado, ou ainda ter-se optado pela substituição dessas penas por uso de tornozeleira ou outras medidas restritivas previstas em lei que não levem ao encarceramento em massa.

Mas a determinação não se cumpre porque os juízes de execuções penais nas instâncias inferiores relutam em abrir mão da pena restritiva de liberdade, consequência de uma política e mentalidade encarcedoras que atingem mais, invariavelmente, quem tem menos dinheiro.

Um exemplo típico deste comportamento judicial é o caso de um homem que foi processado em três instâncias por quatro anos, de 2017 até o início deste mês, por ter sido flagrado tentando furtar dois bifes de frango em um mercadinho em uma cidade do interior de Minas Gerais.

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“Na cabeça de muitos magistrados, o tráfico é considerado um crime muito grave, que assola a sociedade. E por isso entra como caso excepcional, justificando a não aplicação do marco legal da primeira infância (que prevê a concessão prioritária de prisão domiciliar a mães de fihos pequenos que cometeram delitos menores). Muitas mulheres, mães, gestantes ou responsáveis por crianças com menos de 12 anos, presas e que poderiam estar em situação de liberdade, mas não estão”, afirma Diniz.
 

Projeto

Além de serem privadas das visitas familiares, as detentas também viram desaparecer da rotina o apoio religioso e as atividades culturais. Uma dessas oficinas era realizada pela experiente educadora Rita Duenhas, em unidades femininas do interior paulista. Vendo o sofrimento se agravar, ela criou um projeto específico para acolher essas mulheres.

“A gente tem relato das cartas que recebemos sobre a angústia de não ter visita, de ter familiares adoecidos e não estar próxima a eles. De perder familiares e não ter possibilidade de vivenciar esse processo de sepultamento. É um momento muito delicado e de extrema fragilidade emocional”, afirma Duenhas.

Chamado de “Paz no Coração, Liberdade na Prisão", o projeto circula por centros de ressocialização e consiste em palestras dedicadas ao desenvolvimento da saúde mental e emocional, gravadas por um grupo de meditadores voluntários.

O impacto foi tão positivo que passou a ser oferecido também ao público masculino.

“Quando a gente entra com um projeto desse, a gente não quer saber qual o crime que a pessoa cometeu, a gente vai pensar no ser humano. E se a gente não cuidar das emoções dessa pessoa, se a gente não trabalhar profundamente a dor delas, elas vão sair adoecidas, e pessoas adoecidas são muito mais propensas a voltar para o mundo adoecido que as levou à penitenciária”, explica a educadora.

Desde o início, as palestras já foram realizadas em mais de dez unidades, atendendo aproximadamente 500 reeducandos. Segundo a educadora, a aceitação tem sido grande “Recebemos relatos muito emocionados, de como tem sido um bálsamo nesse momento. Sabemos que foi um projeto que chegou na hora certa, que tem ajudado na condução de emoções que eles estão vivendo nesse momento.

Para dar conta das emoções suscitadas pelas práticas meditativas, Duenhas criou outro projeto, chamado de Cartas que Curam. Ele consiste no estímulo à escrita de cartas por parte dos reeducandos, que são encaminhadas a voluntários, que respondem, trazendo uma palavra de ânimo e solidariedade. O processo todo é feito de forma online.

“Esse projeto tem suscitado neles a importância de cuidar das emoções. Sempre, no sistema prisional, a lógica priorizada é a de gerar empregos, inserir no mercado de trabalho. Nunca tinha havido um olhar profundo sobre as emoções dessas pessoas. O quanto elas ficarem desequilibradas, tanto irão levar de desequilíbrio para sociedade”, afirma Duenhas.

Para a educadora, o trabalho de humanização é um dos meios fundamentais para avançar no combate à vilipêndio dos Direitos Fundamentais a que são submetidas as pessoas sob a tutela do Estado no Brasil.

Edição: Vinícius Segalla