Em um anúncio conjunto com o presidente espanhol Pedro Sánchez na quarta-feira (9), o presidente argentino Alberto Fernández fez uma declaração em tom de aproximação com seu par europeu que tem repercutido desde então:
"Como escreveu alguma vez Octavio Paz, os mexicanos saíram dos índios, os brasileiros saíram da selva, mas nós, os argentinos, chegamos dos barcos. Eram barcos que vinham da Europa, e assim construímos nossa sociedade", disse Fernández, que citou, na verdade, a letra de uma canção de Litto Nebbia.
O discurso carrega a herança racista e xenofóbica construída ao longo de muitos anos na Argentina, particularmente exitosa na invizibilização do não branco, tanto na história quanto no presente.
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"A desafortunada frase presidencial reafirma, mais uma vez, o espírito europeísta deste país, que despreza o indígena e estabelece parâmetros epistemológicos incompreensíveis para uma lógica presa no reducionismo existencialista", aponta a militante Mapuche Moira Millán.
Portanto, a fala de Fernández não se trata de um ato falho ou isolado: é símbolo de um eurocentrismo profundamente naturalizado – e o espanto coletivo talvez tenha sido seu desvelamento.
"O negacionismo como política de estado foi e continua sendo genocida. Como podem entender nosso mundo vinculado a raízes profundas em territórios milenares se têm os pés navegando nas águas distantes do outro continente?", questiona Millán.
"Se os argentinos vêm dos barcos, então terão direitos sobre os mares e nós, as nações indígenas, sobre os territórios.
"O que desceu dos barcos foi o genocídio"
A militante mapuche, empreendeu a caminhada de mulheres indígenas para denunciar o racismo e o terricídio no país, um feito histórico que, avalia, "repercutiu mais no exterior do que aqui, na Argentina europeísta".
"Nenhum governo jamais assumiu a verdade da plurinacionalidade dos territórios, sustentada apesar das investidas genocidas, e nossa existência perdurou como provocação às suas tentativas fracassadas de embranquecer o componente populacional dos territórios invadidos", ressalta Millán.
A analogia com os barcos nega a existência dos povos originários nos territórios que hoje se conhecem como o estado argentino e, ao mesmo tempo, ignora que foi exatamente através desses barcos que africanos escravizados desembarcaram nas Américas colonizadas pelos europeus.
A historiadora e militante afrobrasileira Bruna Stamato, residente na Argentina, destaca que a declaração de Fernández é simbólica no país.
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"De fato, houve uma grande migração europeia para a Argentina, e isso é um fato histórico incontestável. Mas a Argentina não começa a partir da colonização. Já havia toda uma história anterior, e essa história tem consequências no presente."
Essa identificação com o europeu branco e a distância com povos indígenas, africanos e afrodescendentes foi um projeto que funcionou com extremo êxito na Argentina através da invizibilização.
O trabalho escravizado de pessoas africanas, afrodescendentes e indígenas armou as bases do país, e isso precisa ser discutido.
(Bruna Stamato, historiadora e militante afrobrasileira)
Enraizada na cultura e perpetuada através do modelo educacional, o olhar para o não branco como outro e o branco como a norma encontra seu auge de expressão no portenho que, dentro do próprio país, se vê como centro: Buenos Aires, capital, por onde tudo passa.
"No século 18, Buenos Aires chegou a ter uma população negra formada por africanos que chegaram escravizados e afrodescentes, que correspondia a 40% da população, um número bem representativo", ressalta Stamato.
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Ela destaca ainda que, durante as invasões inglesas, Buenos Aires sobreviveu graças ao lucro do tráfico escravista.
"Já desde a primeira fundação da cidade, com Pedro Goyena, no final dos anos 1500, os colonizadores chegaram aqui trazendo pessoas escravizadas, e Buenos Aires tinha um porto importante de tráfico de escravizados, que eram levados para as minas do Peru, de Potosí, iam território adentro, do que hoje são outros estados nacionais", explica.
Não dá mais para sustentar a absurda narrativa de que a Argentina se constitui apenas dos que descenderam dos barcos.
(Moira Millán, militante mapuche)
Invizibilização como política de estado
O censo populacional foi um ponto de inflexão, a negação institucional dos afrodescendentes e africanos nos dados demográficos do país, algo que ocorreu de forma distinta no caso da população indígena.
"No final o século 19, quando começa a ideia de se construir uma nação moderna, tudo o que representava o 'selvagem' devia ser negado", pontua Stamato.
"Com o indígena, houve uma inclusão de alguma maneira na narrativa nacional, mas como algo do passado. A narrativa do estado moderno incluiu o indígena como algo do passado, infantilizado, e o afrodescendente precisava ser abolido, porque representava o trabalho escravizado", explica, ressaltando que esse aspecto histórico é pouco discutido no país, que contou com trabalho escravizado tanto nas zonas urbanas como nos campos.
"A omissão ou negação de um conflito não provoca sua desaparição ou resolução, só o aprofunda", diz Millán.
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"A Argentina terá que repensar sua relação com as nações indígenas às quais invadiu. Não dá mais para sustentar a absurda narrativa de que a Argentina se constitui apenas dos que descenderam dos barcos."
Bruna Stamato destaca a necessidade de uma "profunda revisão histórica e nos currículos escolares".
"O mito da construção da Argentina branca é muito problemático, porque não dá conta de toda a complexidade e multiculturalidade que conforma a população no país, e que não é só Buenos Aires. O norte argentino é indígena", afirma.
"O trabalho escravizado de pessoas africanas, afrodescendentes e indígenas armou as bases do país, e isso precisa ser discutido. Primeiro, para repensar a história e, segundo, para dar conta da existência dessas pessoas."
Edição: Leandro Melito