Se a comercialização de remédios à base da cannabis, como o óleo CBD (canabidiol), for regulamentada no Brasil, pelo menos 6 milhões de brasileiros poderão ser diretamente beneficiados no tratamento de diversos tipos de doenças. Esse seria o número de pessoas que fariam o uso regular dos derivados da planta. A conclusão consta no relatório “Impacto Econômico da Cannabis” produzido pela Kaya Mind, empresa de pesquisa e inteligência especializada no setor.
Alguns dos principais dados do relatório foram antecipados para o Brasil de Fato e serão oficialmente apresentados na Cannabis Affair, maior evento canábico do país, que acontecerá virtualmente nos próximos dias 9 e 10 de junho. Entre os convidados do evento, estão a ministra Carmen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), o ator e escritor Gregório Duvivier, o neurocientista Sidarta Ribeiro e os músicos Bnegão, Rael e Fiotti, além de mais de 70 médicos, pesquisadores e especialistas no assunto.
Um passo importante na direção de legalizar o uso medicinal da cannabis foi dado nesta terça-feira (8), pela Câmara dos Deputados. O Projeto de Lei (PL) 399/15, que regulamenta o cultivo da cannabis sativa (que é planta da maconha) para fins medicinais e a comercialização de medicamentos que contenham extratos, substratos ou partes da planta, foi aprovado na comissão especial que analisou o tema.
::Comissão aprova produção de cannabis para uso medicinal, industrial e de pesquisa::
Como a matéria tem caráter conclusivo, ela seguirá direto para o Senado, caso não haja um recurso de 51 deputados (10%) ou mais para que seja votada em plenário. Se, posteriormente, o Senado vier a aprovar a proposta, ela seguirá para sanção ou veto presidencial. Nesta terça-feira, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) já se pronunciou sobre o assunto, afirmando que veterá o projeto se chegar à sua mesa.
Caso isso venha a ocorrer, o processo legislativo prevê ainda que o Congresso pode derrubar o veto presidencial, por meio de votações com maioria absoluta nas duas Casas.
A proposta altera a Lei 11.343/06, que institui o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas e que autorizou o plantio de vegetais como a cannabis para fins científicos ou medicinais, em local e prazo determinados, mediante fiscalização dos órgãos competentes.
Segundo o relator da proposta, o deputado federal Luciano Ducci (PSB-PR), ela apenas regulamenta a legislação vigente e vai ajudar as famílias de pacientes que não responderam bem a outras terapias ou tiveram efeitos colaterais com medicamentos disponíveis no mercado. Atualmente, há consenso na comunidade médica internacional sobre a existência de propriedades terapêuticas na cannabis para uma série de enfermidades e para a redução de dores crônicas.
Entre outros fins terapêuticos, estudos indicam que os derivados da planta podem ser utilizados no tratamento de doenças como Alzheimer, Parkinson, glaucoma, depressão, autismo e epilepsia. Além disso, há evidências conclusivas da eficácia dos canabinoides contra dores crônicas no tratamento de câncer, apresentando efeitos antitumoral e também contra enjoos causados pela quimioterapia.
Os canabinoides também demonstraram evidências moderadas de que são efetivos para o tratamento da fibromialgia, distúrbios do sono, aumento do apetite e diminuição da perda de peso em pacientes com HIV e outras síndromes degenerativas, além de causar melhora nos sintomas de síndrome de Tourette e de ansiedade e de transtornos pós-traumáticos.
Avanço
"O Brasil está pronto para regulamentar a Cannabis, a sociedade precisa disso. Todas as pesquisas feitas com pessoas apontam números como 72% da população favorável à regulamentação da Cannabis medicinal. A gente só precisa entender isso como um movimento de política pública, onde o Brasil tem muito mais a ganhar do que a perder", afirma Maria Eugênia Riscala, cofundadora e CEO da Kaya Mind.
A empreendedora esclarece ainda que o PL 399/15 não aborda a questão das drogas ou seu combate no Brasil, somente encaminha uma solução "para quem mais precisa, que são os pacientes".
A luta de grupos e entidades da sociedade civil pela regulamentação do uso medicinal da cannabis é antiga no país, mas ganhou força na última década, especialmente a partir de 2014, puxada principalmente pelas famílias de crianças com epilespia, como relata Emílio Figueiredo, advogado e diretor da Rede Jurídica pela Reforma da Política de Drogas (Rede Reforma).
"O potencial é gigante. Não vou falar que a cannabis é uma panaceia, mas ela vem tratando pessoas com diversas doenças. A Cannabis traz alívio, traz dignididade para o paciente. É algo positivo a ideia de que essas pessoas, com acompanhamento médico e produtos devidamente regulamentados, possam dispor desse tratamento. Muita gente vai se beneficiar, e os médicos poderão usar a ferramenta terapêutica com mais segurança", argumenta.
O número de registro e pedidos de importação e renovação da licença para o óleo CBD (à base da planta) cresceu 2.009% nos últimos cinco anos, segundo o relatório da Kaya Mind. De acordo com o estudo, em 2015, quando a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) passou a autorizar a importação de medicamentos à base de cannabis, havia cerca de 896 pedidos para seu manuseio. Em 2020, o número foi de 18.905. Já apenas nos primeiros quatro meses de 2021, foram registrados mais de 8.920 pedidos.
A solução via importação do produto, porém, não está ao alcance da maioria da população brasileira. Uma caixa de Mevatyl®, um dos medicamentos autorizados e registrados na Anvisa, com três frascos de 10 mililitros (ml), chega a custar cerca de R$ 3.000, incluindo as taxas de importação.
Por causa disso, centenas de pacientes recorreram à judicialização para obter medicamentos canabinoides pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O resultado é uma situação posta onde a Justiça convive com uma repetição constante e frequente de ações judiciais (que, novamente, só estão ao alcance econômico de parte da população), que são distribuídas nas varas fóruns e comarcas, passando por longo e custoso processo judicial entre particulares que desejam importar remédios e o Estado que busca proibi-los, enquanto o paciente aguarda o produto.
Só pessoas jurídicas terão autorização para cultivar a planta
O texto aprovado na comissão especial prevê que medicamentos canabinoides poderão ser produzidos e comercializados em qualquer forma farmacêutica permitida (sólida, líquida, gasosa e semi-sólida) e sem restrição quanto aos critérios para sua prescrição.
Pela proposta, a prescrição do medicamento será de acordo com a opção do médico e de comum acordo com o paciente, sem a necessidade que sejam esgotadas todas as alternativas terapêuticas para somente então se prescrever os medicamentos canabinoides.
O projeto estabelece, ainda, que o cultivo de plantas de cannabis para fins medicinais será feito exclusivamente por pessoa jurídica, “previamente autorizada pelo poder público”. As sementes ou mudas usadas deverão ter certificação, que só poderá ser feita em local fechado, como uma estufa ou outra estrutura adequada ao plantio de plantas.
Além disso, os cultivos terão que obedecer a requisitos de controle, tais como: rastreabilidade da produção, desde a aquisição da semente até o processamento final e o seu descarte; plano de segurança para a prevenção de desvios; e presença de um responsável técnico, incumbido do controle dos teores de THC (substância psicoativa) constantes nas plantas.
No estudo “Impacto Econômico da Cannabis”, a Kaya Mind estima que, ao se incorporar todas as formas de utilização da planta, o setor de cannabis no Brasil tem potencial de gerar US$ 4,93 bilhões ao ano até 2026, se for regulamentado agora. Desse valor, US$ 1,78 bilhão apenas para área de saúde, e o restante distribuído em setores como têxtil, agronegócio, alimentos, bebidas, beleza e cuidados pessoais.
Segundo a consultoria Grand View Research, o tamanho do mercado global legal de cannabis em 2020 foi de US$ 33,1 bilhões, com perspectiva de chegar a US$ 84 bilhões em 2028. Já a empresa Market Data Forecast estima que só mercado medicinal mundial de cannabis girou em torno dos US$ 13 bilhões em 2020, podendo chegar a US$ 44 bilhões em 2025. Atualmente, quase 40 países no mundo já regulamentaram a cannabis para uso medicinal e adulto.
Cânhamo
Além da regulamentação do uso da cannabis medicinal, o PL 399/15 aborda o uso industrial da planta, para a comercialização de produtos derivados do cânhamo, espécie da planta sem propriedades psicoativas da qual se utiliza o caule e os galhos para produzir fibras têxteis, celulose, resinas, insumos para a fabricação de roupas, cosméticos, produtos de higiene pessoal e até suplementos e gêneros alimentícios.
Se a aprovação do projeto na Câmara foi um marco e uma conquista importantes para os que defendem a regulamentação do uso da planta no país, a proposta está longe de se tornar lei.
A norma ainda irá tramitar no Senado, onde - a depender das votações - terá que ser aprovada por maioria em comissão e plenário. Se, durante a tramitação, tiver qualquer artigo, inciso ou alínea alterada, seguirá de volta à Camara, para nova votação pela manutenção ou não da(s) mudança(s) inserida(s) pela outra Casa Legislativa. Só depois disso que seguirá para sanção ou veto presidencial e, finalmente, eventual votação para derrubar o veto presidencial.
Finalmente, após aprovada, a lei, para ser aplicada, ainda dependerá de regulamentação pelo Poder Executivo, que deverá fazê-lo por meio de decreto e outros instrumentos jurídicos próprios, que não dependem do Poder Legislativo.
*Com informações da Agência Brasil.
Edição: Vinícius Segalla