CONTRA MONOPólio

Alvos da Anvisa, associações de cultivadores democratizam acesso à cannabis medicinal

Proposta do governo é autorizar uma única farmacêutica a distribuir produto a base de canabidiol no valor de R$ 2,5 mil

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Apenas duas organizações estão autorizadas a plantar Cannabis para produção medicinal; uma delas, a Abrace, oferece opções de óleos a partir de R$ 80 e emprega 180 funcionários - Divulgação

Enquanto a proibição do plantio em solo brasileiro faz os remédios à base de princípios ativos da Cannabis, nome científico da maconha, custarem entre R$ 2,5 mil e R$ 2,9 mil nas farmácias, pacientes e associações arriscam a liberdade plantando maconha e produzindo em casa os próprios remédios.

A Associação Brasileira Cannabis Esperança (Abrace), da Paraíba, uma ONG autorizada pela Justiça desde 2017 a plantar maconha e produzir medicações, consegue oferecer óleos a partir de R$ 80.

:: Leia também: Entraves burocráticos e prisão de cultivadores dificultam acesso à cannabis medicinal ::

Mas a oferta barata parece ser um problema para o governo: em fevereiro deste ano, a entidade teve esse direito suspenso na Justiça, após ação movida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), colocando em risco o tratamento de cerca de 14 mil pacientes.

Dias depois, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF5) suspendeu as atividades da ONG, depois que a agência informou à Justiça que a entidade descumpriu as determinações da liminar.

:: Leia mais: Justiça suspende autorização de associação da PB para cultivo medicinal de maconha ::

Segundo a Anvisa, a ONG não entrou com pedidos de Autorização Especial e Autorização de Funcionamento. Na visão da Anvisa, a falta desses documentos trazia "risco sanitário" aos pacientes.

Pacientes dependem de tratamento a custo acessível

Não é o que diz, por exemplo, o coronel aposentado da Polícia Militar de Pernambuco Israel de Moura, pai da Gabrielle, uma menina de 7 anos com microcefalia e que chegou a receber dos médicos “menos de 24 horas de vida”. A menina é tratada com óleo da Abrace.

O Canabidiol (CBD) e Tetrahidrocanabinol (THC) são os princípios ativos da maconha mais estudados e utilizados na produção de medicamentos, como o CBD da farmacêutica paranaense Prati-Donaduzzi e o Mevatyl, um spray de CBD e THC para controle de esclerose múltipla que custa R$ 2,9 mil.

No entanto, outros canabinoides só estão presentes nos chamados óleos integrais, também conhecidos como full spectrum, que são feitos a partir de toda a planta, e não de uma molécula isolada, como é o caso do CBD da Prati ou o Mevatyl.

“Em setembro de 2020, a Gabrielle completou um ano sem crises convulsivas. E com efeitos colaterais zero. Ela come de tudo, bebe de tudo, dorme bem. A parte cognitiva e a motora melhoraram muito”, conta.


Coronel Israel Moura e a filha Gabrielle visitam a estufa da organização Abrace / Divulgação

Com a suspensão da Abrace pela Justiça, uma mobilização contra a medida tomou as redes sociais. Dezenas de pacientes e até artistas, como a atriz Cláudia Rodrigues e a cantora Rita Lee, se manifestaram.

"Depois que passei a usar o óleo de Cannabis, minha escoliose galopante finalmente me fez andar normalmente sem qualquer dor. Imploro à Anvisa que reconheça o trabalho sério da Abrace e entenda que seu trabalho precisa continuar", declarou a rainha do rock.

Após a repercussão do caso, o desembargador federal Cid Marconi Gurgel de Souza, responsável pela ação no TRF5, visitou a Abrace e derrubou a suspensão por 4 meses até que a ONG se adeque às normas da Anvisa.

Não foi o mesmo destino da Associação de Apoio à Pesquisa e à Pacientes de Cannabis Medicinal (Apepi), do Rio de Janeiro. Em junho do ano passado, a ONG se tornou a segunda entidade autorizada no Brasil a cultivar maconha e produzir remédios aos seus associados. Contudo, a liminar foi derrubada quatro meses depois, após um recurso da Anvisa.


Apesar da liminar ser derrubada, a Apepi continua seu plantio em um sitio na serra do RJ, praticando a desobediencia civil / Arquivo Pessoal

Entre os argumentos da agência em sua contestação estava o de que não seria atribuição legal da agência fiscalizar uma atividade não regulamentada. O órgão afirmou ainda que a atividade poderia gerar riscos à sociedade e favorecimento financeiro à ONG.

Hoje, além da Abrace da Paraíba, apenas outra ONG tem o direito de plantar maconha para produção medicinal: a Cultive, de São Paulo. Contudo, é uma autorização diferente. Se trata de um habeas corpus coletivo para 21 associados da entidade. Segundo o advogado autor da ação, Ricardo Nenem, por se tratar de um processo na esfera criminal, a Anvisa não pode recorrer.

Patente em tempo recorde

Sem óleo de ONGs, com risco de prisão para quem planta, com medicamentos importados retidos na alfândega e com o remédio da farmácia por quase R$ 3 mil, ativistas defendem a legalização do cultivo.

Não é o que pretende o governo federal. A intenção do Executivo é oferecer o CBD da Prati-Donaduzzi no Sistema Único de Saúde (SUS). Um produto caro, com uma única concentração e fabricado por uma única empresa.

Em agosto de 2019, quando era Ministro da Cidadania, o deputado federal Osmar Terra (MDB-RS) recebeu o presidente da Prati-Donaduzzi, Eder Mafissoni, que apresentou o CBD da empresa. Um mês antes, Terra defendeu "fechar a Anvisa" caso o plantio de Cannabis fosse aprovado no país, e que não era necessário liberar o plantio para extrair o Canabidiol porque exista uma opção sintética.

A opção defendida por Terra é o CBD da Prati-Donaduzzi, única empresa a receber uma autorização sanitária da Anvisa para produzir derivados de Cannabis e vender em farmácias. O preço: R$ 2,5 mil cada frasco de 30 ml. O valor alto é justificado pela necessidade de importação dos insumos.

Segundo relatório da Comissão de Incorporação de Tecnologias do SUS (Conitec), o custo da política de distribuição do medicamento pelo SUS custaria R$ 416 milhões em 5 anos e atenderia apenas mil pacientes.

Apesar de alto, é um valor subestimado já que somente a Anvisa possui 15 mil pacientes autorizados a importar esses medicamentos.

Esse cálculo não inclui os pacientes que usam óleos de associações ou que produzem em casa. A proposta do governo também não prevê outras concentrações ou opções full spectrum e com THC. A própria Conitec recomendou rejeitar a proposta.

A Prati-Donaduzzi foi escolhida como a empresa à frente da comercialização do CBD após uma série de decisões favoráveis junto ao governo.

Em outubro do ano passado, o Ministério da Saúde, através da Fundação Oswaldo Cruz, fechou um convênio de transferência de tecnologia com a Prati por 5 anos, num contrato de sigilo industrial.

Em junho de 2020, o Instituto Nacional da Propriedade Intelectual (INPI), subordinado ao Ministério da Economia, concedeu à farmacêutica uma patente de uma solução de CBD de 20 a 250 mg/ml. O pedido foi concedido apenas 4 anos após o depósito da patente, um tempo recorde.

A suposta invenção já é de conhecimento científico desde 1993, data da publicação do estudo brasileiro Effects of ipsapirone and cannabidiol on human experimental anxiety, publicado originalmente no Jornal of Psychopharmacology. O INPI recomendou anular a patente à época, pois considerou a invenção como algo “trivial e dentro das habilidades ordinárias de um técnico no assunto".

Para o neurocientista Fabrício Pamplona, doutor em farmacologia de canabinoides, a concessão da patente e a estratégia de incluir o CBD no SUS estão interligadas.

“A média [de análise de patentes] do INPI é de 12 anos. Eles não só concederam sem inventividade, como em tempo recorde, o que é no mínimo suspeito e casa com os interesses da empresa de entrar no SUS”, avalia.

“Quando se tem um produto patenteado, há uma justificativa da compra sem licitação. Isso acontece para qualquer tecnologia, porque aí se consegue justificar que não há concorrente”.

Em dezembro de 2020, três contestações foram protocoladas no INPI pedindo a nulidade administrativa da decisão que deu a concessão da patente à farmacêutica. O parecer pela anulação ainda precisa ser aprovado pela presidência do órgão para que a patente caia.

Caso contrário, a estratégia da Prati-Donaduzzi pode criar um monopólio no Brasil para um produto que a empresa não inventou. A Prati não está se manifestando à imprensa sobre o assunto.

Privação de direitos

Projeto de Lei (PL) 399/2015, em tramitação na Câmara dos Deputados, legaliza o cultivo para fins medicinais e industriais, embora vete o plantio individual.


Organizações de cultivadores de Cannabis oferecem opções de óleos a partir de R$ 80 / Divulgação/Abrace

Mesmo com a aprovação do PL 399/2015, o cultivo individual de cannabis não será permitido, apesar das centenas de decisões favoráveis pelo Brasil.

O neurocientista Sidarta Ribeiro defende todas as vias de acesso: do remédio na farmácia, do importado, do produzido pelas associações e também aquele feito em casa pelas famílias de baixo poder aquisitivo.

"Se a gente impedir que uma coisa que dá lucro possa ser feita sem fins lucrativos, vai contra qualquer espírito cristão. Isso tem que ser regulamentado, mas com o devido suporte técnico dos institutos, das universidades".

A eventual legalização, no entanto, não será ética nem justa, para Sidarta Ribeiro, se não propuser nenhuma reparação histórica.

"Não é possível que esse grande mercado vá se regulamentar sem que as comunidades que mais pagaram o preço da guerra às drogas, que são as comunidades vulneráveis, periféricas, sejam devidamente reparadas, fazendo parte desse mercado. É importante que tenham startups de Cannabis na Maré, no Complexo do Alemão, na ZL paulistana, onde houver gente que sofreu abuso de coerção estatal".

Edição: Poliana Dallabrida