Com a escalada do conflito armado na Terra Indígena Yanomami, em Roraima, os moradores do território aguardam uma reação do Estado brasileiro. Depois de um confronto que deixou feridos na última segunda-feira (10/05), a presença de garimpeiros fortemente armados na região afetada por invasões aumenta o medo da violência generalizada.
"Todas as autoridades têm conhecimento da situação, e agora teve esse tiroteio. Os garimpeiros estão usando armas pesadas, metralhadoras, ilegalmente", afirma à DW Brasil Dário Kopenawa Yanomami, vice-presidente da Hutukara Associação Yanomami.
Ao menos quatro garimpeiros e um indígena foram baleados, segundo Dário, com base em depoimentos das lideranças locais. À imprensa brasileira, outros líderes indígenas falam em três invasores mortos e cinco feridos, além de um indígena ferido com um tiro de raspão na cabeça.
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O tiroteio começou quando sete embarcações se aproximaram da comunidade de Palimiú e iniciaram os disparos. Os indígenas tentaram se defender, afirma o vice-presidente da Hutukara, segundo relatos de lideranças locais.
Em seguida, um pedido de socorro foi enviado ao Exército, à Polícia Federal, à Funai e ao Ministério Público de Roraima. "Solicitamos aos órgãos que atuem com urgência para impedir a continuidade da espiral de violência no local e garantir a segurança para a comunidade ianomâmi de Palimiú", diz o ofício assinado pela associação.
"Não houve reação do governo federal ou do estadual até agora. O Estado brasileiro simplesmente não reagiu", critica Dário. "Há muitos anos nós pedimos a retirada dos garimpeiros. Nem presidente [Jair] Bolsonaro nem o vice [Hamilton] Mourão resolveram nada", adiciona.
Às margens do rio Uraricoera, a comunidade de Palimiú é uma das mais afetadas pelo garimpo ilegal de ouro na Terra Indígena. O local funciona como uma "porta de entrada" dos invasores, que chegaram ao território numa primeira grande onda ainda na década de 1980.
Atualmente, estima-se que pelo menos 20 mil invasores atuem no território demarcado exclusivamente para uso dos indígenas. Só em 2020, o garimpo ilegal de ouro avançou 30%, provocando a degradação de 2.400 hectares, apontou um estudo publicado em março pelas organizações Hutukara e Seedume, com apoio do Instituto Socioambiental (ISA).
Risco à saúde dos indígenas
Além da violência, os invasores trouxeram o perigo do contágio do novo coronavírus aos indígenas. Dados atualizados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) contabilizam mais de 53 mil casos de covid-19 entre indígenas no país, de 163 povos diferentes. Das 1.061 mortes registradas até esta terça-feira, nove foram de ianomâmis.
"A covid-19 se espalhou pela terra indígena. Crianças estão doentes. Os garimpeiros estão espalhando a doença junto com a violência, surto de malária e contaminação dos nossos rios por mercúrio", diz Dário Kopenawa Yanomami.
Embora os indígenas façam parte do grupo prioritário para receber a vacina contra a covid-19, poucos teriam sido imunizados até o momento, argumenta a associação.
Doses da vacina teriam ainda sido desviadas por agentes que atendem indígenas. "A última denúncia que a gente recebeu diz que haveria profissionais da saúde cedendo vacina contra covid-19 para garimpeiros em troca de ouro", relata Adriana Huber Azevedo, coordenadora regional do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).
Surto de malária
Além do coronavírus, um outro microorganismo, conhecido há décadas pelos ianomâmis, agrava a saúde deles: o protozoário que provoca a malária. Dados da Hutukara Associação Yanomami fornecidos pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) somam mais de 10 mil casos da doença no território.
"Faltam equipamentos, falta remédio. Não há remédio suficiente para todos os doentes. São muitos os que têm [malária], então o remédio está acabando muito rápido", diz Dário.
O único tratamento disponível para malária é feito com comprimidos à base de cloroquina ou primaquina. Utilizada desde a década de 1930 contra a malária, a cloroquina chegou a ser pesquisada contra a covid-19, mas estudos científicos mostraram sua ineficácia contra o vírus que provocou a pandemia. A droga, porém, ainda é defendida pelo presidente Jair Bolsonaro como tratamento precoce da covid-19 e foi distribuída em muitas regiões do país para esse fim.
"O surto de malária, a violência, o garimpo ilegal estão afetando as comunidades. As pessoas estão contaminadas em seu próprio ambiente, há crianças muito doentes", comenta Dário, em referência à foto de uma criança ianomâmi desnutrida registrada por um missionário na aldeia Maimasi e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo.
"É importante dizer: os ianomâmis não estão morrendo de fome. Essa não é a situação da maioria de nós. Mas falta assistência de saúde nas comunidades, e a foto mostrou muito bem isso", adiciona.
Perigo aos isolados
Junto aos problemas já conhecidos, o garimpo na Terra Indígena Yanomami ameaça a existência de membros da etnia que decidiram não ter contato com a chamada civilização. "Os brancos chamam esses povos de isolados, nós chamamos de povos da floresta, de Moxi hatëtëma", diz o porta-voz da associação.
Segundo a Hutukara, exploração ilegal de ouro muito próxima à região onde vivem os isolados representa um risco gravíssimo. "Não sabemos quantos já morreram, se estão infectados pelo coronavírus, se estão com malária… Estamos muito preocupados", diz Dário, explicando que um monitoramento é feito com ajuda de imagens de satélite.
"Está sendo estarrecedor o processo. Os ianomâmis estão denunciado desde 2018 o aumento do garimpo ilegal na terra deles", diz Azevedo, do Cimi, sobre a situação. "Os garimpeiros têm total liberdade para transitarem na terra indígena. E não está acontecendo nada."
Em resposta a ações ajuizadas, decisões judiciais recentes obrigaram o governo federal a reativar as bases de proteção etnoambiental no território e a apresentar um plano para a expulsão dos invasores.
"Mesmo assim, o garimpo continua solto. Bolsonaro quer falar com os garimpeiros para liberar a atividade deles, isso dá ar de legalidade a uma organização criminosa", comenta Azevedo.
A DW Brasil pediu informações aos ministérios da Defesa e da Saúde, mas não obteve um retorno até o fechamento desta reportagem.