Os alimentos ultraprocessados são conhecidos pelo pouco valor nutricional, pela publicidade atraente e pela presença permanente nos carrinhos de compra dos supermercados. Vão desde os já conhecidos como vilões, como embutidos e refrigerantes, até os enganosos lácteos e integrais, como iogurtes e barras de cereal.
Fáceis de encontrar e de consumir, esses produtos costumam prometer nutrientes, vitaminas e, principalmente, muito sabor. Durante a pandemia, só no Brasil, o consumo de ultraprocessados aumentou de 9% para 16% entre adultos de 44 a 55 anos.
São criações da indústria alimentícia, um setor robusto com influência política para barrar iniciativas como a que a Argentina tenta impulsionar: a lei de rotulagem frontal e de promoção da alimentação saudável.
Aprovado no Senado argentino em outubro do ano passado, o projeto de lei se baseia nos parâmetros da Organização Panamericana de Saúde (OPS) para indicar, com um alerta octogonal em cor preta para os níveis abusivos de ingredientes críticos de açúcar, sódio, gordura e calorias.
Segundo especialistas no tema, a medida é fundamental para impulsionar o consumo consciente e incentivar uma alimentação saudável.
"Essas intervenções levam a olhar pela primeira vez produtos já assimilados e vê-los em sua comunicação enganosa", aponta a jornalista argentina especializada em alimentação Soledad Barruti.
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A medida é especialmente necessária considerando que apenas 26,9% dos consumidores lêem os rótulos dos alimentos, dos quais apenas 13% conseguem interpretar e entender as informações descritas nas embalagens, segundo o último levantamento da Pesquisa Nacional de Nutrição e Saúde, do Ministério de Saúde da Argentina.
"Entre 6 e 10 segundos, uma marca convence uma pessoa a comprá-la através de estratégias de neuromarketing sumamente efetivas. É aí que a rotulagem frontal intervém, mostrando na frente das embalagens, pelo menos, os nutrientes críticos", aponta Barruti, autora dos livros "Mal comidos" e "Mala leche".
Lobby industrial tenta barrar a rotulagem nutricional
O PL, agora tratado na Câmara dos Deputados na Argentina, avançou lentamente desde a aprovação no Senado, no ano passado. O lobby das grandes empresas e indústrias tem sido forte no país, já que o setor controla parte do território produtivo, como é o caso da indústria açucareira no Norte argentino.
É através de câmaras de representação como a Coordenação das Indústrias de Produtos Alimentícios (COPAL) – que se opõe ao sistema de advertência com octógonos pretos "por induzir o temor ao consumo de alimentos" – e do financiamento de pesquisas e profissionais de nutrição que as empresas freiam a lei sem dar as caras.
Conforme publicado no site Bocado, Mónica Katz, diretora da Sociedade Argentina de Nutrição, foi umas das que se engajaram na campanha contrária à lei de rotulagem.
A influência política dessas indústrias se reflete também no discurso de deputados e senadores que levantam questões como a "demonização do açúcar", o atraso que representaria tal lei diante do bloco Mercosul e o acesso a alimentos mais baratos para classes de baixa renda.
No Brasil, uma lei de rotulagem foi aprovada no ano passado, em formato de pequenas lupas, considerada uma conquista do lobby industrial. Já o Uruguai aprovou uma lei de rotulagem frontal, mas, com a posse do atual presidente Luis Lacalle Pou e seu pacote neoliberal, a aplicação da lei foi postergada, também através do Mercosul.
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Por isso, seria emblemática a aprovação e aplicação da rotulagem frontal na Argentina. No caso do Brasil, para os defensores da rotulagem, fica o precedente: uma lei ruim é pior do que não ter lei nenhuma.
Em um princípio, seriam seis as comissões que tratariam o projeto em Deputados na Argentina. No entanto, a partir das denúncias por especialistas, militantes e meios de comunicação alinhados à proposta da rotulagem sobre o atraso provocado pelo lobby industrial, foram estabelecidas três comissões que, hoje, discutem o projeto na Câmara: Legislação Geral; Ação Social e Saúde Pública; e Defesa do Consumidor, do Usuário e da Concorrência e Indústria.
As campanhas em apoio ao PL, como a #LeyDeEtiquetadoYa, e meios de comunicação alinhados à proposta da rotulagem têm denunciado as investidas do setor industrial e fortalecido o debate sobre educação alimentar.
Impacto da rotulagem
Agustín Suarez, representante a União dos Trabalhadores da Terra (organização de pequenos produtores na Argentina), ressalta as pautas do setor campesino, que tem exigido políticas públicas para, assim, impulsionar uma cadeia saudável de produção, de território e de alimentos. Com investimento no setor, alimentos saudáveis seriam mais acessíveis para a população.
"O governo atravessa contradições, por precisar dos dólares que vêm do setor agroexportador, que traz tantas consequências drásticas", aponta Suarez.
"Por outro lado, é necessário investir em outros sistemas e empoderar os pequenos produtores. Aí é onde o governo deveria investir e escutar, e não só a nós, mas a diversos setores que estão gerando propostas políticas para transformar a realidade a médio e longo prazos", observa.
É uma tarefa do Estado e das organizações lutar para uma melhor qualidade nutricional, não só dos setores médios, mas dos populares.
Entre as propostas de organizações camponesas como a UTT estão a Lei de Acesso à Terra, que propõe o desenvolvimento rural, ambiental e social através da distribuição justa de terras para pequenos produtores.
Os projetos elaborados pelas organizações apresentam uma visão global de toda a cadeia produtiva, incluindo desde investimento em produção de sementes – segundo Suarez, apenas 4 empresas no mundo as produzem – até a planificação de cultivo orgânico e o financiamento para aprimorar o setor do campo.
Alimentação consciente
O aspecto central do projeto de lei de rotulagem frontal em discussão na Argentina é a alimentação na infância. Uma das audiências preferidas da indústria alimentícia, as crianças recebem desde cedo quantidades problemáticas de açúcar, sódio e gordura, vendidas como saudáveis pela publicidade dos ultraprocessados.
"75% das compras de uma casa são orientadas pelas crianças", afirma Barruti.
"Essa transição da sociedade de alimentos reais a uma alimentação quase exclusivamente de ultraprocessados é o aumento de doenças antes raras na infância: problemas cardiovasculares, diabetes tipo 2, crianças com hipercolesterolemia como se tivessem 60 anos."
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Outro grande fator de sucesso do marketing alimentício é a segmentação por fases da vida. Ao construir públicos e direcionar mensagens específicas para cada um, as indústrias de ultraprocessados instalaram a ideia, já bem assimilada, de uma alimentação diferenciada para a infância.
É um cenário grave, como detalha Barruti: "É uma vulneração de direitos através de mensagens manipuladoras que induzem o consumo desses produtos desde os primeiros momentos da alimentação até marcas que acompanharão essas pessoas pelo resto de suas vidas."
Edição: Leandro Melito