Na década de 1990, a ditadura de Alberto Fujimori derrotou as organizações subversivas armadas e, através de uma combinação de repressão, violação dos direitos humanos e corrupção desencadeada em todos os níveis do Estado e da sociedade, impôs uma Constituição e um modelo econômico ultra neoliberal.
Isso significou um enriquecimento ilimitado dos super-ricos às custas das imensas maiorias precarizadas ou em uma frágil e insegura integração por meio do consumo e do crédito, que foi vagamente assimilada como a "classe média".
Parte desse processo, foi a decomposição da esquerda histórica, fragmentada até o ponto de ser indizível, desorientada diante das novas realidades, especialmente a perda de seus vínculos massivos e orgânicos com os setores populares. Vínculos esses que nunca foram capazes de reconstruir.
É por isso que as alternativas eleitorais à direita neoliberal surgiram de outros setores diferentes e, mais ou menos, novos, como os do nacionalismo de Ollanta Humala, que vertiginosamente traiu essas aspirações assim que chegou ao governo. Ou como Verónika Mendoza, que surgiu como figura política proeminente após romper com a traição de Humala e cuja base mais ampla está na classe média ilustrada, culta, progressista e ambientalista.
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Hoje, de surpresa, sem que ninguém o visse chegar, por fim surge no Peru uma esquerda autenticamente popular, após a candidatura de Pedro Castillo. Prova disso é precisamente a surpresa e a invisibilidade com que ele saiu vitorioso no primeiro turno dessa eleição presidencial, realizada em 11 de abril, e caminhando para a disputa do segundo turno em 6 de junho. Isso se deve ao fato de que aos olhos de analistas, da mídia e até mesmo da militância da esquerda com consciência de classe não o esperavam, nem o queriam.
Todos eles se sentem desconfortáveis com essa corrente política que, na marra e sem permissão, sem estratégias de "big data" e estratégias de Twitter, que vem dos Andes profundos, sempre desprezados com racismo e classismo, do movimento “rondero” camponês e urbano, o movimento social mais importante do país. Além de parte dos Movimentos da Alba (que reúne organizações populares de diversos países das Américas) no Peru, dos setores sindicais dos professores, que têm sido os mais combativos e críticos do abandono neoliberal da educação nos últimos anos, e que tem a capacidade de disputar os morros pobres de Lima, porque fala a mesma língua e é movido pelo mesmo abandono, esquecimento, descontentamento e esperança.
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Trata-se de uma esquerda popular, autenticamente autônoma, sem complexos e que não busca nem aceita chantagens da direita. Um exemplo disso é quando o candidato Pedro Castillo, um professor e “rondero” de 52 anos, declarou publicamente que não há ditadura na Venezuela e que os venezuelanos, sem interferência externa, devem resolver eles próprios os seus problemas; mostrando que era um mito desnecessário juntar-se à calúnia da direita contra a Venezuela para "ser uma esquerda aceitável" no país.
Outro exemplo, quando ele aponta que, se o Congresso, que será altamente fragmentado e com uma maioria de bancadas de direita, não quiser apoiar a convocação de uma Assembleia Constituinte, ele usará seus poderes presidenciais para fechá-lo, o que transmite uma mensagem de vontade política e coragem que o torna credível e dá garantias de adesão, sem o medo de indecisão e traição posteriores.
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Certamente, há erros e limitações. Por acaso há alguma obra humana que não? Como o que é grave e precisa ser mudado é sua rejeição à abordagem de gênero e aos direitos da diversidade sexual. Elas refletem, além disso, as limitações de sua ampla base popular, que ainda tem esses preconceitos e ignorâncias.
Há também acusações de corrupção contra alguns líderes ou candidatos de seu partido, o Peru Livre, algo do qual, literalmente, nenhuma força política peruana escapa. Além disso, deve ser dito, eles são, em qualquer caso, mínimos diante da corrupção industrial dos partidos de direita.
Contudo, como dizia o cubano universal José Martí: "O sol tem manchas. Os ingratos só vêem as manchas. Os agradecidos vêem a luz”. E não há dúvida de que essa luz popular abrirá caminhos e novos cenários, independentemente do que acontecer no segundo turno e diante de um neoliberalismo peruano que está se desmoronando irremediavelmente.
O neoliberalismo, se chegar novamente ao governo no segundo turno das eleições do próximo 6 de junho, é altamente provável que não consiga sequer terminar seu mandato, dadas as tendências para a crise social e a decomposição política, estrutural e irreversível.
Mas isso será outra história. Agora é hora de unir todos os esforços dessa nova esquerda popular que o povo peruano finalmente deu à luz.
*Ricardo Jiménez A. é sociólogo, comunicador e facilitador chileno residente no Perú.
**Texto publicado originalmente em seu blog pessoal.
Edição: Vivian Fernandes