Eleições 2021

Lava Jato aprofundou “caos político” no Peru e respinga nas 18 chapas presidenciais

Operação contribuiu para que a corrupção substituísse a economia como a preocupação central dos peruanos

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Protesto contra a posse de Manuel Merino, presidente que durou menos de cinco dias no cargo, em novembro de 2020 - ERNESTO BENAVIDES / AFP

Renúncia de presidente investigado por corrupção, em 2018. Suicídio de ex-chefe de Estado que cumpria prisão preventiva, em 2019. Três mudanças na cadeira presidencial em uma semana, em 2020. O Peru chega às eleições deste ano com uma instabilidade política sem precedentes, e a operação Lava Jato é um elemento-chave nessa sequência de acontecimentos.

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O pleito está marcado para 11 de abril. Analistas locais afirmam que a fragilidade do sistema partidário e o desinteresse crescente dos peruanos por política torna o cenário eleitoral imprevisível.

O sentimento de antipolítica, que nos primórdios da operação era direcionado a pessoas específicas, afeta hoje todas as 18 chapas que concorrem à Presidência – mesmo quando o candidato nunca foi citado em casos de corrupção.

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Histórico

O Peru entrou na rota da Lava Jato em 21 de dezembro de 2016, quando foi publicado um documento do Departamento de Justiça dos Estados Unidos informando que a empreiteira brasileira Odebrecht havia subornado autoridades de 12 países para ganhar licitações de obras de infraestrutura.

A construtora teria transferido ao menos US$ 29 milhões – cerca de R$ 160 milhões, em valores atualizados – como propina a servidores públicos entre 2005 e 2014.

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O período corresponde aos governos de Alejandro Toledo (2001-2006), Alan García (2006-2011) e Ollanta Humala (2011-2016). Este último ficou nove meses preso, se candidatou novamente à Presidência em 2021, mas não é um dos favoritos, segundo analistas, justamente porque seu nome está associado àquelas investigações de corrupção e lavagem de dinheiro.

“Humala é acusado de vários delitos, e ainda não foi estabelecida uma pena. O mais conhecido deles é a suspeita de favorecimento ilegal à Odebrecht para a construção de um gasoduto, além de haver recebido dinheiro dessa empresa para campanha”, lembra a pesquisadora peruana Zoila Ponce de Leon, professora assistente do departamento de Política da Universidade Washington e Lee, nos Estados Unidos.

“Isso impacta na opinião pública e, certamente, na rejeição a candidatos investigados. Pesquisas realizadas anualmente pela Universidade de Vanderbilt apontam que a corrupção é o tema mais importante para os peruanos nos últimos cinco anos. Antes [da Lava Jato], era a economia”, acrescenta.

Além da Odebrecht, vieram à tona denúncias de pagamentos de propina supostamente intermediados por Humala envolvendo a construtora OAS. Favorecimentos a outra empreiteira brasileira, Andrade Gutierrez, e a um cartel conhecido como “clube da construção”, dominado por empresas locais, também estão no raio de investigações da Lava Jato peruana.

O primeiro impacto político significativo da Lava Jato na vida dos peruanos foi a renúncia do então presidente Pedro Pablo Kuczynski, conhecido como PPK, em março de 2018. Seu governo, de centro-direita, estava enfraquecido por acusações de que ele teria aceitado propina da Odebrecht enquanto primeiro-ministro, entre 2004 e 2006, além de participar de um esquema de compra de votos.

PPK deixou o cargo para o vice, Martin Vizcarra, e um ano depois foi condenado a 36 meses de prisão.

Semanas antes daquela condenação, a Odebrecht havia assinado o primeiro acordo de colaboração com o Ministério Público do país andino. Em seus depoimentos, executivos brasileiros revelaram informações sobre esquemas de corrupção em quatro projetos de infraestrutura e delataram membros do Estado peruano que teriam sido subornados.

Em julho de 2019, outro ex-presidente, Toledo, foi preso nos Estados Unidos, também por suposto envolvimento com o caso Odebrecht.

Naquele momento, todos os ex-chefes de Estado vivos do Peru estavam presos ou eram alvos da Lava Jato.

Suicídio

Ainda em 2018, a Promotoria peruana abriu investigação contra o ex-presidente Alan García por suposta participação em um esquema de subornos para construção de linhas do metrô da capital Lima pela empreiteira brasileira.

Seis anos antes, ele havia sido contratado pela Odebrecht para uma palestra na Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp).

A construtora teria investido US$ 100 mil em uma apresentação de duas horas sobre comércio e investimentos externos. O suposto intermediário do pagamento, o advogado brasileiro José Américo Spinola, havia feito um acordo de delação premiada no Brasil contando o que sabia sobre o caso.

Em dezembro de 2018, García foi proibido de sair do Peru por 18 meses e pediu asilo ao Uruguai, alegando ser vítima de perseguição. O pedido foi negado pelo então presidente uruguaio, Tabaré Vázquez.

Uma ordem de prisão preventiva contra o ex-presidente peruano foi assinada em abril. García cometeu suicídio em 17 de abril de 2019, e em sua última mensagem alegou inocência.

“Como em nenhum documento sou mencionado e nenhum indício ou evidência me alcança, somente lhes resta a especulação ou inventar intermediários. Jamais me vendi e está provado”, escreveu, horas antes de se suicidar com um tiro na cabeça.

O suicídio de García ocorreu às vésperas do interrogatório de Jorge Barata, ex-superintendente da Odebrecht no Peru. Informações vazadas à imprensa na época indicavam que a situação do ex-presidente se complicaria ainda mais com esse depoimento.

Críticas isoladas

“Há um excesso deliberado e abusivo das prisões preventivas. Isso tem que parar.”

O discurso da parlamentar peruana Luciana León, um dia após o suicídio do companheiro de partido, é um dos primeiros exemplos de crítica pública à Lava Jato no Peru.

No mesmo dia, o Congresso Peruano registrou a manifestação de outra correligionária, Nidia Vílchez, ainda em clima de luto pela morte do ex-presidente. “Exigimos que as instituições não sejam usadas para perseguir politicamente inimigos. Alan García não permitiria esse circo”, disse.

Não passava de um alarme falso. Especialistas afirmam que, enquanto setores progressistas denunciam violações constitucionais e partidarização da operação no Brasil, críticas como essas são “raríssimas” no Peru.

Professora do Departamento de Ciências Sociais e Políticas da Universidade do Pacífico (UP), Paula Muñoz atribui essa diferença à forma como os cidadãos se relacionam com os partidos políticos em cada país.

“No Brasil, há uma identificação partidária mais consolidada, sobretudo com o petismo. Existe um olhar partidário da opinião pública sobre a Lava Jato, apontando que a operação teve um direcionamento político contra a esquerda”, compara.

“Aqui no Peru, não existem identificações partidárias tão ajustadas como no Brasil. Temos um sistema de partidos muito frágil. Alguns chegam a dizer que ‘não temos partido’. Por isso, não houve aqui a acusação de que as investigações são enviesadas, até porque elas atingiram atores de todos os espectros políticos quase que igualmente. E ninguém saiu em defesa deles”, completa Muñoz.

O exemplo mais evidente é o de Verónika Mendoza, da coligação de esquerda Juntos Pelo Peru, que declarou apoio irrestrito à operação.

A aceitação do cargo de ministro pelo ex-juiz Sergio Moro e seu posterior rompimento com o presidente Jair Bolsonaro ampliaram a rejeição à Lava Jato no Brasil. O vazamento de diálogos entre os operadores, divulgados pelo portal The Intercept e no âmbito da Operação Spoofing, ampliaram essa percepção negativa.

Nada disso tem repercussão significativa do lado de lá da fronteira – e não é por falta de violações na condução da Lava Jato peruana. Em março de 2019, dois membros do Ministério Público do Peru foram gravados induzindo um preso a mentir ou omitir fatos sobre sua ligação com investigados, como o ex-presidente Humala.

Nenhum dos 18 candidatos a presidente critica abertamente os métodos da operação.

“No Peru, é muito difícil encontrar um político que se coloque contra as investigações da Lava Jato como um todo”, reforça a professora Zoila Ponce de León. “Há queixas por parte de alguns investigados, mas existe um apoio, de modo geral, às investigações e ao combate à corrupção, porque os candidatos sabem que isso importa muito aos peruanos.”

O Peru vive uma crise econômica profunda, com queda de 20% do Produto Interno Bruto (PIB) em 2020. Diferentemente do Brasil, mesmo setores de esquerda não associam os rompimentos de contratos determinados pela Lava Jato com o enfraquecimento do setor produtivo.

“Pelo contrário, muitos candidatos fazem a conexão de que, se combatermos a corrupção, podemos gerar mais crescimento econômico. Essa associação que se faz no Brasil não ocorre no Peru”, relata a especialista.


Peru vai às urnas no dia 11 de abril / Arte: Brasil de Fato

Três presidentes em uma semana

Vice de PPK até março de 2018, Vizcarra permaneceu na Presidência do Peru por dois anos e sete meses. Denunciado por corrupção, ele sofreu impeachment em 10 de novembro de 2020 e foi substituído provisoriamente por Manuel Merino, então presidente do Congresso.

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A manobra parlamentar que colocou Merino no poder não foi reconhecida por parte da comunidade internacional e despertou manifestações de rua que resultaram em duas mortes em Lima. Diante das pressões, em menos de quatro dias 13 dos 18 ministros nomeados por Merino renunciaram – gesto repetido por ele na mesma semana.

Desde 16 de novembro de 2020, o presidente é Francisco Sagasti, ex-executivo do Banco Mundial e ex-presidente do Congresso Peruano. Ao assumir, ele abriu mão da pré-candidatura e se comprometeu a trabalhar para uma transição sem solavancos.

Impacto na eleição de abril

Além de Ollanta Humala, outros dois candidatos à Presidência do Peru têm sua campanha diretamente afetada pela Lava Jato.

Ex-secretário geral da presidência entre 2012 e 2013, Julio Guzmán é acusado de receber financiamento ilegal da Odebrecht em sua campanha presidencial de 2016.

A única candidata em 2021 que enfrenta uma acusação formal da Lava Jato é Keiko Fujimori, filha do ex-ditador Alberto Fujimori. A denúncia foi formalizada pelo procurador José Domingo Perez, da força especial da Lava Jato do Peru, que pede 30 anos de prisão por lavagem de dinheiro, crime organizado e obstrução à justiça.

“Isso quer dizer que esse caso passou da etapa preparatória, preliminar”, explica Arturo Maldonado, doutor em Ciência Política pela Universidade de Vanderbilt, nos EUA, e professor da Pontifícia Universidade Católica do Peru.

A promotoria solicitou até a prisão preventiva de Fujimori, o que impediria sua candidatura, mas este último pedido não foi aceito.

“A candidata imediatamente se manifestou dizendo que havia uma intromissão da justiça na política, acusando o procurador de ingerência eleitoral por acusá-la no meio da campanha”, descreve. O ex-presidente Vizcarra, que agora é candidato ao parlamento, também vem questionando o vazamento seletivo de informações da Lava Jato a jornalistas.

O especialista ressalta que acusações como essa prejudicam certamente a campanha de Fujimori, o que não significa que seus votos serão capitalizados por adversários específicos, seja da esquerda ou da direita.

“Alguns anos atrás, em certas eleições, era comum que peruanos assumissem que votariam e candidatos que ‘roubem, mas façam obras’. Era uma espécie de mantra das nossas eleições”, lembra. “Agora, o sentimento é ainda mais pessimista: muitos assumem que, simplesmente, nossos governantes vão nos roubar e dificilmente farão algo para a população, considerando a instabilidade dos últimos cinco anos.”

Ponce de León pondera que as pesquisas que apontam a rejeição de cada candidato não especificam o motivo do “antivoto”. Keiko Fujimori, que vive a pior situação na Lava Jato, aparece com mais de 50% de rejeição nesses levantamentos, a maior entre todos os concorrentes.

“O segundo com mais rejeição é Humala, com 9%. Não é tão alto, mas ele é o segundo com mais ‘antivoto’”, ressalta a pesquisadora.

A apatia dos eleitores peruanos se reflete nas pesquisas. O candidato que lidera a corrida até o momento, o ex-congressista Yonhy Lescano, tem apenas 15,6% das intenções de voto.

 

Em segundo, aparece o ex-goleiro e conservador George Forsyth, com 13,1%, seguido pela candidata de esquerda Verónika Mendoza, com 11,2%.

Esta última não está envolvida diretamente em casos de corrupção, mas alguns adversários tentam associá-la à corrupção de Humala e sua esposa. “Esse é um dos eixos da anticampanha contra Verónika”, enfatiza Ponce de León.

A candidata de esquerda integrava a base de apoio do governo Humala até junho de 2012, quando renunciou ao Partido Nacionalista Peruano – sem mencionar a corrupção como motivo para deixar a legenda.

Mais do que um ou outro político, a Lava Jato peruana reforçou o descrédito dos partidos e o desdém dos cidadãos pelo tema. Esse movimento abriu caminho para o ascenso de discursos religiosos, ultraconservadores e populistas sobre aborto, eutanásia e delinquência – três dos temas mais debatidos pelos candidatos, ao lado da corrupção.

“O que as informações da Lava Jato fizeram foi confirmar a desconfiança nos políticos e na política, reforçando uma ideia de que todos os políticos são corruptos, todos são iguais e é muito difícil lutar contra a corrupção”, analisa Paula Muñoz.

Arturo Maldonado analisa que os partidos ainda não se recuperaram do “caos político” dos últimos anos, aprofundado pela Lava Jato.

Ou seja, a imagem da “velha política” foi destruída, mas ainda não se construiu nada no lugar.

“Não tivemos tempo de fazer uma substituição política. Estamos em uma situação onde não há claridade sobre quais podem ser as alternativas viáveis para a política peruana. As pessoas estão cada vez mais afastadas do mundo político”, afirma.

Zoila Ponce de León chama atenção para como a Lava Jato amplificou uma tendência que já ocorria em eleições anteriores no Peru: quase todos os candidatos se apresentam como “outsiders”, de fora do mundo político.

“Mesmo Lescano, que é congressista há muitos anos, evoca esse discurso, dizendo que não é de Lima [capital], se vendendo como diferente, como outsider. Isso fazem quase todos, porque veem os peruanos cansados da política tradicional e querem uma alternativa”, observa.

Desde fevereiro, a Lava Jato perdeu espaço no noticiário político peruano para outro escândalo de corrupção, apelidado de “VacinaGate”, que investiga autoridades que furaram a fila da imunização contra covid-19.

O Peru registrou 50,2 mil mortes por coronavírus até o momento, e está em uma fase de abertura após um mês de lockdown, iniciado em 27 de janeiro. O número de óbitos e infectados por dia caiu após as medidas de isolamento.

Ao contrário de outros países, as pesquisas apontam que a abstenção eleitoral no Peru não será maior que nos anos anteriores, mesmo com a pandemia. Um dos motivos é que a legislação do país é uma das mais rigorosas quanto a punições aos eleitores que não comparecem às urnas.

Edição: Rebeca Cavalcante