Utilizado pelos opositores para retardar votações de projetos em relação aos quais se têm objeções, o chamado “kit obstrução” pode estar com os dias contados na Câmara dos Deputados.
O motivo é uma articulação de aliados do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), com o apoio do presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), que pretende desidratar os mecanismos de resistência previstos no regimento. O grupo busca acelerar votações de seu interesse, especialmente a agenda econômica.
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Uma medida dessa natureza precisaria partir da mesa diretora da Câmara por meio de um projeto de resolução para ser avaliado pelo plenário. Até o momento, o texto não foi oficializado, mas a proposta foi ventilada por bolsonaristas há dois meses e pode vir à tona ainda neste ano. A articulação envolve membros de siglas como PTB e PSL, que compõem a base do governo Bolsonaro.
A tendência é que a pauta tenha entre seus interlocutores a deputada Bia Kicis (PSL-DF), a nova e controversa presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), para quem a medida terá prioridade, em caso de formalização.
Nivaldo Albuquerque (PTB-AL) também apoia a medida, e antecipa: “Queremos reduzir o número de requerimentos, obstruções para podermos tramitar a matéria, porque há momentos em que chegamos aqui e passamos a noite só votando obstrução”.
Os entusiastas do tema analisam a possibilidade de sugerir alterações que resumam o percurso para se chegar às vias de uma votação. A ideia não é inédita e foi levantada também em gestões anteriores.
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“Trincheira das minorias”
A Câmara conta com 17 dispositivos dos quais os deputados podem lançar mão para tentar atrasar ou mesmo impedir uma votação. São recursos como requerimentos de retirada da pauta e de inversão de pauta – este último usado para mudar a ordem dos itens a serem apreciados e postergar a votação de um projeto que esteja na frente.
Ausentar-se do plenário para impedir que se atinja o quórum necessário ao início de uma sessão deliberativa, por exemplo, também é um instrumento de obstrução, bem como o uso do tempo de liderança – um intervalo que varia de 3 a 10 minutos – para usar o microfone e as questões de ordem.
“Quando há visões diferentes, as regras regimentais são a trincheira das minorias. Como esses recursos regimentais são muitos, quando apresentados maciçamente, obstruem a pauta. Essa é a razão de serem chamados de ‘kit obstrução’”, explica o regimentalista e professor Nivaldo Ferreira, também especialista em processo legislativo.
Esse tipo de iniciativa é característico de debates sobre medidas que suscitam controvérsias. Nesse sentido, Ferreira destaca que o regimento serve para “mediar conflitos”. “Se não tiver um instrumento pra proteger a minoria das maiorias, a maioria atropela.”
Há diferentes pautas polêmicas que se destacam pela quantidade de obstrução enfrentada. É o caso, por exemplo, de medidas como reformas tributária, trabalhista e da Previdência, projetos de relaxamento de regras ambientais e temas mais conservadores, como o do projeto Escola sem Partido.
No caso deste último, a proposta começou a ser discutida em uma comissão especial em fevereiro de 2018 e acabou arquivada em dezembro do mesmo ano, no final da legislatura, sem ser votada.
A pauta, que contava com uma avantajada rejeição popular, tinha apoio da maioria dos parlamentares do colegiado, mas travou em meio a uma dura obstrução da oposição na Câmara.
Resistência
A deputada Erika Kokay (PT-DF), uma das principais oposicionistas da comissão na época, está entre os parlamentares que mais se utilizam das medidas de resistência durante as sessões na Câmara.
Ela critica a ideia de enxugamento do kit obstrução e afirma que a Casa “já vive um momento extremamente grave”,com a votação acelerada de propostas complexas. Para a petista, o eventual andamento de um projeto que mire as possibilidades de obstrução agravaria o contexto de autoritarismo que marca o país.
“[A proposta] é um conceito do arbítrio, de impedir a discussão contraditória e de impor a vontade do presidente da República, destruindo o próprio Poder Legislativo”.
Alice Portugal (PCdoB-BA), da vice-liderança da minoria, aponta que, se levar a proposta a cabo, Lira estaria contradizendo as promessas que fez durante sua candidatura ao cargo de presidente.
“A oposição, que, nesta quadra, é minoritária – nós somos cerca de 130 –, tem o direito de ter voz. E esta foi a promessa do presidente eleito: dar voz aos deputados. Então, de fato, não é algo que me pareça mantenedor da estrutura democrática e de participação coletiva mudar o regimento a esta altura”.
Para a parlamentar, uma eventual mudança do tipo careceria de um debate amplo, envolvendo diferentes atores, e dilatado no tempo. “Se quer fazer uma mudança de regimento, vamos instaurar um debate que sirva de uma legislatura para outra. Mas buscar isso agora seria como mudar as regras do jogo com o jogo em andamento.”
A oposicionista levanta ainda o argumento de que o regramento do Poder Legislativo precisa ser pensado como algo perene: “Essas regras não podem ser casuísticas. Hoje atingem um, amanhã atingem outro, a depender das circunstâncias que estejamos a enfrentar. Neste momento, nós somos oposição. Já fomos governo, e as regras regimentais de obstrução não foram modificadas, dando voz à oposição de então”.
Erika Kokay afirma que a oposição pretende “trabalhar de todas as formas possíveis” para travar a proposta da redução do kit, caso ela venha a ser formalizada pelos aliados de Bolsonaro. “Espero sinceramente que uma parte dos partidos saiba que estamos falando de um instrumento que não tem cor partidária. Maiorias e minorias são mutáveis a cada legislatura”.
Edição: Vinícius Segalla