Racismo

Prisão de jovem negro por desacato à PM expõe eugenia do Judiciário, diz advogado

Juíza contrariou a Defensoria e condenou o atendente Matheus dos Santos Brito por "risco à ordem pública"

Brasil de Fato | São Paulo (SP) | |
Em frente à filha, Matheus dos Santos Brito foi agredido e preso por policiais na Cidade Ademar, Zona Sul de São Paulo - Ponte Jornalismo

Na última quinta-feira (25), o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) decretou a prisão preventiva de um jovem negro que foi agredido e preso pela Polícia Militar diante da filha de 5 anos.

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A abordagem na Cidade Ademar, Zona Sul de São Paulo, aconteceu na noite de quarta-feira (24), e foi gravada por um dos policiais e por pessoas presentes no local. Logo de uma série de ameaças, o policial deu voz de prisão a Matheus dos Santos Brito após o jovem proferir a frase: “você é muito opressor”. 

No vídeo, é possível ver Matheus implorando para não ser levado pelos policiais em frente à filha — que estava aos prantos. Levado para a delegacia, Matheus foi preso, sem direito à fiança, pelos crimes de resistência, desobediência e desacato, previstos nos artigos 329, 330 e 331 do Código Penal. 

De acordo com o Boletim de Ocorrência, Matheus teria resistido à abordagem agredindo os PMs — o que não é constatado nas imagens.

A  prisão preventiva decretada pela juíza Thais Fortunato Bim contrariou a recomendação da Defensoria Pública de São Paulo (DPE-SP), que solicitou a liberdade provisória ou ao menos a prisão domiciliar de Matheus por considerar a prisão ilegal. 

Para a DPE, não houve existência de crime. O órgão argumenta ainda que a detenção por desacato não está amparada pela Convenção Interamericana de Direitos Humanos.

Na decisão, a juíza defendeu que o jovem negro poderia conferir “risco concreto de fuga e à ordem pública” e que, caso solto, poderia cometer outras atividades ilícitas pela condição de ser um profissional autônomo.

“A recolocação em liberdade neste momento (de maneira precoce) geraria presumível retorno às vias delitivas, meio de sustento”, diz trecho da sentença. 

Pai de duas filhas, Matheus, de 26 anos, trabalha em uma adega como atendente e hoje está detido no Centro de Detenção Provisória (CDP) Belém II.

Padrão do judiciário

A prisão traz à tona o padrão racista do judiciário brasileiro em condenações desta natureza. É o que aponta Flávio Campos, advogado da modelo e coreógrafa Babiy Querino, condenada injustamente a 5 anos e 4 meses de prisão em 2018. Ela cumpriu um terço da pena antes de ser absolvida

"Nós estamos tratando da seletividade penal. Quem são os destinatários do sistema penal, e como a burguesia ou a classe dominante e o poder judiciário, perpetuam o projeto eugenista, branco, de poder, onde desumanizar corpos negros pelas instâncias jurídicas, e em conformidade com a legislação, é o principal objetivo", afirma. 

Segundo o advogado, a versão dos policiais, que sustenta a decisão judicial, é bem diferente da exposta no vídeo — que mostra Matheus sofrendo ameaças e questionando de forma legítima a ação policial. 

“Esse rapaz foi preso porque chamou os policiais de opressores. Ele foi preso por falar a verdade. E quando a justiça converte a prisão dele em preventiva, está reforçando esse aspecto opressor, porque tanto a Polícia Militar como o judiciário expressam a mesma face do Estado e a mesma política de segurança”, explica o advogado. 


Caso Babiy tornou-se símbolo de racismo e injustiça / Foto: José Eduardo Bernardes

Histórico

Thais Fortunato Bim foi a mesma juíza que condenou Jhonathan Paulo dos Santos pelo roubo de um carro, em 2018, após o jovem negro ter sido reconhecido por usar ‘luzes’ no cabelo e estar próximo ao local onde o veículo foi encontrado pela PM.

Apesar de imagens de câmeras de segurança comprovarem que ele não estava no local do crime, o jovem ficou recluso em regime fechado de março de 2018 a fevereiro de 2021, e hoje cumpre prisão domiciliar.

Em junho de 2016, a juíza também absolveu um policial militar que matou a tiros um menor de idade suspeito de roubar sua bicicleta na Marginal Pinheiros, Zona Oeste de São Paulo. 

Para Flávio Campos, a roupagem técnica da Constituição e das leis não passam de retórica para juíza. Em termos práticos, segundo o advogado, a decisão em condenar um réu primário, com bons antecedentes, é "uma resposta do capital”.

“Ela expressa uma ideologia empregada pelo tribunal que não é fiel às provas dos autos, à razão do direito ou à técnica jurídica, é fiel a uma visão burguesa de praticar o direito e de manter todas as injustiças e estruturas de opressão que nós já conhecemos”, aponta. 

Preso por ser negro

No ano passado, Natan Vieira da Paz, de 48 anos, foi condenado a 14 anos de prisão por suposto envolvimento em uma organização criminosa. Na decisão da juíza Inês Marchalek Zarpelon, a magistrada acusa o homem de praticar os crimes por ser negro.

“Sobre sua conduta social nada se sabe. Seguramente integrante do grupo criminoso, em razão da sua raça”, diz um trecho da sentença publicada pela juíza da 1ª Vara Criminal da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba (PR), que teve o processo disciplinar por discriminação arquivado. 

A tendência de “desumanização dos corpos negros”, na opinião do advogado de Babiy, deve continuar, assim como o surgimento de uma “nova geração de escravocratas”.

“Nós estamos formando juízes para pensar dessa forma: pegar uma pessoa formalmente acusada por crimes que não justificam prisão, e manter ele preso, com base em qualquer jargão ideológico que não tem nada a ver com o direito. O direito está muito longe disso”, define.

 

Edição: Mauro Ramos