A pandemia de covid-19 não para de crescer a cada dia no Brasil. O alarmante aumento do número de mortes diárias aponta uma nova onda da doença ainda mais agressiva. No entanto, nas favelas e periferias do Rio de Janeiro essa realidade é ainda mais feroz: além das mortes causadas pela pandemia, os moradores têm que conviver com as vítimas deixadas pelas operações policiais - que também atingem uma segunda onda de crescimento nos primeiros meses deste ano.
Em momento algum da pandemia as operações policiais deixaram de acontecer nessas localidades. Somente na região metropolitana do Rio, foram 337 ações registradas desde o início das medidas de isolamento social, em março de 2020, até fevereiro deste ano, segundo levantamento do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (GENI-UFF).
Uma decisão liminar assinada pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin em junho do ano passado, que passou a proibir a atividade nas favelas e periferias do estado, fez com que se tornassem mais tímidas durante um curto período de quatro meses. Entre junho e setembro de 2020, houve uma redução significativa das operações.
Apesar disso, a partir de outubro do ano passado, voltaram a crescer vertiginosamente, fazendo com que o mês de janeiro deste ano alcançasse patamares superiores a janeiro de 2020 - com 49 operações registradas em 30 dias.
“A impressão que tenho é como se estivéssemos sendo duplamente violados. Ou seja, temos que criar uma rede de cuidado para nos prevenir do vírus e outra para nos prevenir das ações dos agentes de segurança do Estado. Gostaria de perguntar ao governador o porquê de manter essas operações. Isso faz parte da lógica de tratar as favelas e seus moradores como os inimigos da cidade, como se ali não morassem cidadãos”, desabafa Shyrlei Rosendo, moradora da Maré, na zona Norte da capital, e integrante da ONG Redes da Maré.
Em relação diretamente proporcional ao número de operações, está a quantidade de vítimas. No total, foram 193 mortos e 132 feridos oficialmente registrados após as ações na região metropolitana do Rio desde o início da pandemia no país, em março de 2020, até fevereiro deste ano. O mês de janeiro deste ano registrou 33 vítimas fatais, enquanto em fevereiro foram 38. Os números representam mais de uma pessoa morta por dia.
Para Daniel Hirata, cientista social e coordenador do GENI-UFF, não há justificativa que sustente a continuidade dessas operações policiais, sobretudo em momento de pandemia, em que, além de matar, atrapalham os serviços de saúde e ajuda humanitária às localidades que mais precisam.
“Quando se observa o aumento das operações, vem acompanhado de um aumento dos crimes contra vida. As operações e a letalidade policial não são eficazes para o controle do crime, pelo contrário, tendem a descontrolar o crime e fazer com que os indicadores aumentem. Não há nada que justifique o sacrifício de vidas em prol da criminalidade. A oposição entre controle do crime e a defesa da vida não se justifica em uma análise apontada em dados e evidências”, explica.
Excepcionalidade?
A proibição das operações policiais nas favelas e periferias do Rio durante a pandemia foi determinada “salvo em casos absolutamente excepcionais, que devem ser devidamente justificados por escrito pela autoridade competente e comunicados ao Ministério Público estadual”. Ou seja, a decisão estabeleceu a obrigação de a polícia, responsável por executar a ação, explicar a finalidade da operação ao Ministério Público do Rio (MP-RJ), órgão incumbido do controle externo da atividade policial.
No entanto, a maneira como o MP-RJ realiza essa atividade é questionada por pesquisadores e movimentos sociais que acompanham o tema. Eles denunciam que o órgão só é notificado depois que acontecem as operações, o que compromete o planejamento e a fiscalização da operação. Além disso, demandam transparência do MP-RJ sobre os critérios utilizados para permitir ou não uma operação.
Para Patrícia Oliveira, da Rede de Comunidades e Favelas contra a Violência, o controle externo das operações tem que ser feito antes pelo MP-RJ e não depois que já aconteceram.
::Defensoria questiona PM sobre operações em favelas do Rio mesmo com proibição do STF::
“Temos um novo procurador geral há três meses. Ainda não sabemos qual o seu posicionamento sobre isso, mas a gestão anterior tinha uma postura complicada. Precisamos de um trabalho específico com a polícia como um todo, de controle de sua atividade. O MP-RJ tem que saber antes quem comanda a operação, qual o armamento usado, quem é o responsável, qual o local, qual o risco, mas não é o que acontece. As operações precisam de planejamento e acompanhamento”, argumenta.
Procurada pelo Brasil de Fato, a assessoria do MP-RJ informou que foi acordado um período de 24 horas após o início da operação para que a polícia envie informações por escrito ao órgão, justificando a ação. “Todas as comunicações recebidas são imediatamente repassadas aos promotores de Justiça com atribuição, para verificação de sua legalidade”, disse em nota, anexando uma tabela com o registro das operações policiais no estado desde a decisão de Fachin.
De acordo com Hirata, a atuação do MP-RJ é muito tímida e ineficiente com relação às suas atribuições de controle externo das forças policiais, fazendo com que o que seria “excepcional” se torne rotineiro.
“Há pouca transparência quanto aos critérios do MP-RJ. Nesse momento de novo aumento das operações, nos perguntamos: afinal de contas, o que o MP-RJ está fazendo? A ausência do controle externo da atividade policial é um estímulo à letalidade porque as forças policiais percebem que há um verdadeiro cheque em branco com relação ao que elas fazem. É um problema muito grave. O MP-RJ deve ser incluído no hall dos responsáveis pelo aumento das operações policiais e da letalidade policial”, denuncia.
“Já perdi a conta”
A decisão liminar do STF que proibiu as operações foi emitida em resposta a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 635, que ficou conhecida como “ADPF das Favelas”. Ela foi proposta pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), por movimentos de favelas e familiares de vítimas de violência policial, por organizações de defesa dos Direitos Humanos e pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro (DP-RJ).
A ação tramita desde 2019, antes do início da pandemia, com o objetivo de denunciar o estado do Rio pelas mortes durante operações policiais.
Quando emitiu a decisão, Fachin declarou que os fatos recentes tornaram ainda mais preocupante a atuação armada do Estado e se referiu ao caso do menino João Pedro, morto a tiros dentro de casa em operação conjunta das polícias Federal e Civil no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo, região metropolitana do Rio, no ano passado.
“Muito embora os atos narrados devam ser investigados cabalmente, nada justifica que uma criança de 14 anos de idade seja alvejada mais de 70 vezes. O fato é indicativo, por si só, de que, mantido o atual quadro normativo, nada será feito para diminuir a letalidade policial, um estado de coisas que em nada respeita a Constituição”, concluiu o ministro.
Na avaliação de Patrícia Oliveira, a decisão foi um marco importante, mas ainda precisa ser fiscalizada para ser cumprida. “Todo dia tem operação, eu até perco a conta. Houve um aumento do número de operações logo em seguida à decisão do STF. Na realidade, ela está sendo descumprida. Nós, enquanto movimentos de favela, temos percebido isso e informado ao Ministério Público também ao Supremo. Nem sempre tivemos resposta. Não dá mais. É muito tempo de abandono. São vidas interrompidas. Algo precisa ser feito”, desabafa.
Entre os dias 16 e 19 de abril estão agendadas audiências públicas no STF para debater a “ADPF das favelas”. O objetivo é coletar informações que subsidiem um plano de redução da letalidade policial no estado do Rio. O pedido foi feito por diversos movimentos sociais e instituições, incluindo a DP-RJ. Os debates serão realizados por meio de videoconferência.
Edição: Vinícius Segalla