A sinalização do governo federal para cortes significativos em programas de saúde mental indica um regresso a um modelo segregador e violador de direitos humanos, segundo a médica, professora e pesquisadora Mônica Nunes, integrante do Grupo Temático de Saúde Mental da Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva).
Conforme o Conselho Nacional de Saúde (CMS), o Ministério da Saúde pretende revisar a Rede de Atenção Psicossocial (Raps) e encerrar programas importantes da Política Nacional de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas, por meio de portarias.
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Estão sob risco, por exemplo, o programa anual de reestruturação da assistência psiquiátrica hospitalar no SUS, o Consultório na Rua; o Serviço Residencial Terapêutico e a Comissão de Acompanhamento do Programa De Volta para Casa.
Ao Brasil de Fato, Mônica Nunes disse que, caso efetivadas, as mudanças vão contra a vontade e necessidade das próprias pessoas atendidas por esses programas, além de significarem o retorno de uma política manicominal, focada em restrições sociais, cujas violações e problemas são comprovadas cientificamente.
Leia a entrevista:
Brasil de Fato: O governo sinaliza uma lista de cortes na Política Nacional de Saúde Mental. Como a política funciona hoje e quais são seus principais pilares?
Mônica Nunes: Esse desmonte vem acontecendo mais fortemente desde o início desta gestão presidencial, embora desde o Michel Temer e até um pouco antes nós já começássemos a observar sinais de retrocesso, quando tivemos, por exemplo, a nomeação de um coordenador de Saúde Mental do Ministério da Saúde, o Valencius [Wurch Duarte Filho], que destoava absolutamente de todo o perfil que nós estamos garantindo ao longo de algumas décadas de uma reforma psiquiátrica antimanicomial.
Quando a gente fala de reforma psiquiátrica antimanicomial, é pensando que durante séculos nós tivemos um modelo onde se priorizava a segregação das pessoas com sofrimento mental. Se propunha que elas fossem tratadas em espaços onde elas ficavam cortadas do convívio com suas famílias, a vizinhança, e se pressupunha que essa orientação distanciada, segregada, seria uma maneira de contornar as manifestações, as expressões desse sofrimento.
As pessoas passaram a ter uma série de formas de viver restritas, com o uso massivo de medicamento, com contenção física e muitas vezes com violência.
Na verdade, o que se observou, a partir de denúncias e muitos artigos e livros escritos, é que esses espaços segregadores, em que você corta os laços das pessoas e impede a capacidade de sociabilidade e desenvolvimento dos seus talentos, não se estabelecem. Aquilo virou um espaço de verdadeiras violações dos direitos humanos, onde as pessoas passaram a ter uma série de formas de viver restritas, com o uso massivo de medicamento, com contenção física e muitas vezes com violência.
Essa série de questões fizeram com que, em um determinado momento da história, houvesse reformas psiquiátricas pipocando no mundo inteiro. Essas reformas propuseram que a gente pudesse avançar em reformas muito mais humanas e dignas, que você permitisse essas pessoas o exercício aos seus direitos de cidadania.
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Quais foram os principais avanços nesse sentido?
Foram, exatamente, o de você sentir que a crítica era muito expressiva a todo contexto que se caracterizasse enquanto manicomial, que aquele espaço em que você coloca pessoas para cortarem o cabelo de uma forma igual, comerem, dormirem, fazerem tudo em determinado horário. É uma massificação na forma de atuar que você, na verdade, está ali controlando comportamentos, e não provocando as subjetividades. Você não estava entendendo, escutando.
Esse avanço é justamente você priorizar a origem do sofrimento – por que ela sofre? O que está provocando aquilo? Saber que você só melhora situações de sofrimento quando você mantém as pessoas na sua rede social. Não adianta afastá-las para que depois elas voltem, porque isso é uma relação de artificialidade. Depois, essa capacidade que elas vão ter de se ressocializar fica extremamente difícil.
Você só melhora situações de sofrimento quando você mantém as pessoas na sua rede social
O questionamento de um uso de medicação, de uma forma quase que punitiva, excessiva, dopando as pessoas, fazendo com que você contenha sintomas, mas não resolva os problemas que elas possam estar enfrentando.
O sofrimento não é apenas um sofrimento individual. Você não adoece sozinho no mundo. Você adoce junto, no sentido de que o sofrimento é fruto ou de relações sociais, sejam elas com famílias ou com vizinhos, mas também fruto de uma sociedade que começa a produzi-lo. A gente sabe que o sofrimento aumenta porque as pessoas sofrem mais privações, por exemplo, socioeconômicas – falta de emprego, falta de moradia, pessoas que têm dificuldade pelo excessivo individualismo, competitividade.
É um modelo que não acredita que o adoecimento é fruto apenas uma desregulação bioneuroquímica
O tratamento tem que ser onde? Na comunidade. Daí a essa ideia de tratamento territorial, comunitário. Você tem que conhecer mais de perto o que está acontecendo nas redondezas, o que está acontecendo dentro daquela casa, na vida daquela pessoa, para que as soluções possam surgir e você consiga contribuir com algum tipo de saída para o que a gente chama de crises.
No entendimento de um modelo psicossocial de atenção, que rege a reforma psiquiátrica, é um modelo que não acredita que o adoecimento é fruto apenas uma desregulação bioneuroquímica. Óbvio que a gente é biologia. Ninguém está negando isso. Muito pelo contrário, não existe essa separação. O ser humano é um bicho danado de complexo. Ele tem as emoções, os afetos, a questão cultural. Não se adoece igual em todas as culturas. Se você for lá nas populações indígenas ou em outras comunidades, você vai ver que as formas de sofrer não são iguais.
Falando em desigualdade, alguns dos possíveis programas cortados são o Consultório na Rua, o Serviço Residencial Terapêutico e a Comissão de Acompanhamento do Programa De Volta para Casa. São políticas que fazem chegar melhor o tratamento a mais pessoas, certo?
Excelente lembrança. Você deu uma dica de como essa política que foi montada [a política antimanicomial] é cuidadosa, porque ela pensa o seguinte: se pessoas foram por tantas décadas internadas, adoeceram mais, elas têm direito a reparação. E, para reparar, elas têm que ter uma renda, com o Programa Volta para Casa, junto com a possibilidade de, caso elas estivessem tão afastadas das famílias de origem, elas terem para onde ir, daí o Serviço Residencial Terapêutico.
Como é que você reinsere socialmente pessoas que foram por tanto tempo afastadas dos seus, criando grandes rupturas? Tem que reparar. Aliás, se repara muito pouco com o Programa de Volta para Casa. Deveria reparar muito mais com o que aconteceu na vida dessas pessoas.
A senhora citou que existem pessoas com olhar restrito para as questões de saúde mental. Hoje, a gente tem um governo federal com olhar restrito. O que podemos fazer como sociedade, como pesquisadores ou até como a própria pessoa em sofrimento para lutar contra isso?
A primeira coisa é isso que você está proporcionando aqui: se comunicar. É muito importante se comunicar com o público, de forma geral. Primeiro que todo mundo tem alguém perto, próximo, que tem algum tipo de sofrimento psíquico. Isso é muito frequente.
Acho que as pessoas têm que ser alertadas, entenderem do que se trata, para que elas também participem. Além disso, é incrível a mobilização enorme que esses retrocessos já estão provocando na sociedade. O número de grupos que se articularam para rebater isso com muita firmeza é expressivo.
Usuários e usuárias de saúde mental que estão se beneficiando, já há algumas décadas, desse modelo antimanicomial estão o tempo inteiro colocando a própria experiência deles e delas como a melhor prova concreta de que vale a pena defender um modelo comunitário, em liberdade, digno. Isso é muito importante.
Não permitir que muito do que foi construído com muita delicadeza, mas também com muita segurança, que isso não desapareça no apagar das luzes.
Também formar frentes parlamentares – já existe uma frente parlamentar capitaneada pela deputada Érika Kokay -, os estados estão se organizando, as prefeituras. É importante que a gente também se articule com o parlamento, afinal de contas eles foram eleitos pela população. Movimentos sociais, a gente precisa. Pesquisas – você tem uma base de dados incrível, que pode ser acessada por quem tenha interesse para ver como são os NASFs (Núcleo de Apoio a Saúde da Família), que são ligados à atenção primária, que é algo que já existia e foi retirado por parte do governo federal.
É fundamental, porque a atenção primária vai naqueles pequeníssimos municípios, onde não faz sentido, pelo número da população, ter serviços mais especializados, como os Centros de Atenção Psicossocial, os Capes. A atenção básica é muito importante a gente ter uma aproximação com essas equipes, com outros profissionais, os agentes comunitários de saúde.
É a gente, agora, conseguir resgatar e não permitir que muito do que foi construído com muita delicadeza, mas também com muita segurança, que isso não desapareça no apagar das luzes. Geralmente, é no apagar das luzes.
Edição: Rodrigo Chagas