Crime

Campanha de combate à violência contra a mulher alerta: agressão começa com palavras

Anualmente, o Brasil registra mais de 50 mil casos de violência verbal; 48% das vítimas apontam companheiro como autores

Belém (PA) | Brasil de Fato |

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Segundo especialista, o objetivo é conscientizar mulheres para que elas possam sair de relacionamentos abusivos e homens para que deixem de praticar o crime
Segundo especialista, o objetivo é conscientizar mulheres para que elas possam sair de relacionamentos abusivos e homens para que deixem de praticar o crime - Divulgação

Nesta quarta-feira (25) é celebrado o Dia Internacional de Combate à Violência Contra a Mulher. A data busca conscientizar pessoas em todo o mundo de que a violência contra mulheres é uma violação de direitos humanos enraizada em séculos de dominação masculina. 

Este ano, uma campanha global realizada pela Babbel, uma empresa de ensino de idiomas, em parceria com o Movimento Me Too Brasil e o Instituto Maria da Penha, ajudará a amplificar vozes femininas em vários países com o intuito de estabelecer a consciência linguística de que a violência muitas vezes começa em palavras. 

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No Brasil, a Lei Maria da Penha enquadra agressões psicológicas. O crime de violência verbal, que afeta profundamente a saúde mental, é registrado, anualmente, cerca de 50 mil vezes.

48% das vítimas apontam namorados, cônjuges ou ex-parceiros como autores, segundo dados do Sistema de Informação de Agravos de Notificação (Sinan), do Ministério da Saúde.

Para Isabela Del Monde, formada em direito pela Universidade de São Paulo (USP), que atua na defesa e expansão dos direitos de mulheres e demais grupos minorizados, os maiores agressores de mulheres são os parceiros amorosos.

"Cônjuges e ex-cônjuges, companheiros ou ex-companheiros, também é comum que haja violência cometida pelo pai, filho, um neto e até mesmo por vizinhos em moradias de coabitação", diz ela.

Del Monde, que também é consultora em equidade, cofundadora da Rede Feminista de Juristas e coordenadora do MeToo Brasil, afirma que é preciso expor que a violência psicológica não é natural e não é aceitável.

"É necessário que haja um desenvolvimento das capacidades emocionais dos homens e também das mulheres, primeiro para que os homens parem de cometer esse tipo de violência e, segundo, para que as mulheres consigam identificar rapidamente esse tipo de violência e se retirar dessa relação", resume

Confira abaixo a entrevista:

Brasil de Fato: Isabela, o que podemos classificar como violência psicológica?

Isabela Del Monde: A violência psicológica e moral, normalmente, se manifesta pela fala ou depreciação de coisas que são importantes para a vítima, como a sua fé, família, amigos ou o seu trabalho. 

Ela se traduz em forma de xingamentos, humilhações e falas que deixam essa mulher para baixo e faz com que ela se sinta com menos valor. Para isso, o agressor usa xingamentos e também manipulações emocionais. 

Em um dia o agressor diz que ama a vítima, no outro, diz que odeia e vai passando o tempo, ele oferece uma série de mensagens, falas e comportamentos contraditórios, ou seja, que você não tem certeza no que pode acreditar, se é no amor ou no ódio.

É como se a vítima vivesse uma eterna sensação de estar "pisando em ovos"

E essa manipulação funciona, ela encontra terreno fértil, porque é assim que a nossa psique funciona. Nós tendemos a ficar envolvidos em manipulações emocionais, justamente, porque elas se baseiam nessa contradição. 

Logo, é muito comum ouvirmos mulheres vítimas de violência psicológica dizerem: "Mas às vezes ele também é um anjo, me trata muito bem, diz que me ama, me dá presentes". Isso não é nada excepcional. Normalmente, o agressor tem, de fato, essas condutas contraditórias e instáveis. 

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É como se a vítima vivesse uma eterna sensação de estar "pisando em ovos". Não é possível identificar qual é o gatilho, o que desperta uma reação violenta, uma reação destemperada por parte do companheiro, do pai, do filho, enfim, do sujeito que está ali cometendo agressões. 

Logo, é importante ter essa visão mais macro do que é essa violência. 

Quem são comumente os agressores dessas mulheres? São os cônjuges?

Infelizmente sim. Os maiores agressores de mulher são cônjuges e ex-cônjuges,  companheiros ou ex-companheiros, também é comum que haja violência cometida pelo pai, por filho, um neto, e até mesmo por vizinhos em moradias de coabitação.

É importante destacar que essa informação é comprovada por dados, como por exemplo, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública [FBSP], IPEA [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada], IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística], Dieese [Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos]  e demais órgãos de produção de pesquisa e dados do Brasil. E não apenas no Brasil, mas também fora daqui, porque a violência, normalmente, acontece por companheiro ou ex-companheiro contra a mulher. 

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Como as vítimas de violência psicológica podem procurar ajuda e quais tipos de provas elas podem ter contra o agressor?

Normalmente, as vítimas têm algum tipo de registro. O agressor pode mandar mensagem cometendo a violência. Logo, o print dessas mensagens valem, o relato que se faz para amigas, quando se está em uma situação dessas, seja pessoalmente ou por mensagem, isso é prova. 

É o que chamamos de testemunha indireta . Ou seja, a pessoa não estava no local do fato quando a violência psicológica aconteceu, mas ela foi a primeira pessoa procurada pela vítima para desabafar. Isso é um tipo de prova válida. 

Além disso, ela pode fazer um diário relatando: dia x, hora x, no local x, isso aconteceu. Isso é prova de memória. 

Se a vítima tem uma anotação de janeiro, outra de fevereiro, uma de abril, outra de maio e resolve procurar ajuda em junho, você já tem um registo de memória que pode ser usado como prova. 

Conte com uma advogada, uma psicóloga que vão te apoiar na criação de um conjunto provas que evidencie perante o judiciário a situação de violência

Além disso, é muito comum que seja feita uma varredura do histórico do agressor pela defensora da vítima. Então, ela também pode contatar outras mulheres que se relacionaram com esse homem de modo a comprovar – caso seja o caso evidentemente –, que ele tem um comportamento em série. Que ele agride mulheres psicologicamente em série. O que, normalmente, e infelizmente, se comprova.

Há pesquisas também que revelam que o comportamento abusivo em relacionamentos se inicia na adolescência. Raramente um homem adulto acaba cometendo uma violência doméstica pela primeira vez. Ele vai cometendo isso ao longo de todos os seus relacionamentos. 

É importante também que a gente estabeleça que nesse crime, que acontece em um ambiente privado – como a violência doméstica e a violência sexual – são crimes em que a palavra da vítima tem especial relevância. O judiciário brasileiro já está mais acostumado com isso e de toda forma é muito importante que qualquer mulher vítima de violência doméstica procure ajuda especializada. 

Essa ajuda pode ser encontrada no MeToo Brasil, na Rede Feminista de Juristas, no Projeto Justiceiras, já existem várias redes gratuitas que as mulheres podem procurar ajuda acerca dos seus direitos. 

Conte com uma advogada, uma psicóloga que vão te apoiar na criação de um conjunto provas que evidencie perante o judiciário a situação de violência. 

Os dados estatísticos apontam que as mulheres estão denunciando mais os casos de violência psicológica?

Na pandemia, houve sim um aumento da busca, um aumento exponencial da busca por ajuda. Então, redes como o Projeto Justiceiras tiveram o aumento da procura na pandemia. No entanto, alguns dados que mostram que reduziu o número de denúncias formalizadas perante a polícia.

Entretanto, isso não é uma surpresa na medida em que por conta da pandemia, o isolamento social enclausurou as vítimas na mesma casa que o seu agressor, e evidentemente, o medo de fazer uma denuncia aumenta. Afinal de contas, a vítima vai até a delegacia fazer um boletim de ocorrência e vai voltar pra onde depois? Para a mesma casa onde está o agressor.

E esse agressor vai ficar sabendo, ele vai ser intimado para falar no processo de investigação, na fase de inquérito policial. Por isso, as vítimas estão com muito medo de formalizar a denúncia porque elas não encontram no aparato público uma estrutura de segurança que as protejam e, principalmente, que protejam seus filhos.

A gente teve um retrocesso de 30 anos das mulheres no mercado de trabalho em apenas sete meses de pandemia

Uma grande preocupação das mulheres vítimas de violência – e uma preocupação justíssima – é a segurança e a subsistência ao seus filhos. Então, muitas mulheres também perderam o emprego na pandemia. Há também vários dados que mostram que a gente teve um retrocesso de 30 anos das mulheres no mercado de trabalho em apenas sete meses de pandemia.

Logo, essa mulher se encontra em uma situação onde ela está desempregada, sem autonomia financeira e isso, evidentemente, a desestimula de denunciar na medida que ela vê no próprio agressor a fonte de renda. É uma situação extremamente cruel.

Então, uma das necessidades que a gente tem no Brasil hoje é um maior investimento público em políticas para a segurança de mulheres e crianças, e infelizmente, não é o que a gente está vendo.

Para se ter uma ideia, na esfera federal o orçamento da pasta de mulheres que era de R$ 290 milhões em 2015 , caiu para 48,8 milhões de reais em 2019. O que você faz com R$ 49 milhões junto a 110 milhões de mulheres e meninas?

Nada. Não se implementa política pública com esse valor. E em janeiro deste ano, o orçamento do executivo previu uma redução de 2 milhões de reais ainda desse orçamento já muito diminuto. 

Só teve um aumento do orçamento, quando o Congresso Nacional, diante da situação de emergência da pandemia destinou emendas parlamentares para o Ministério da Mulher [da Família e dos Direitos Humanos]. Com isso, se não me engano, o orçamento passou para a casa de 110, 120 milhões de reais. 

Mas mesmo assim, o ministério da Mulher, conduzido pela ministra Damares, não está fazendo os devidos investimentos. Inclusive, ela tem respondido a questionamentos tanto do Congresso, quanto do Ministério Público a respeito da sua falta de investimento em políticas públicas para mulheres em um momento de extrema emergência

Falando especificamente da campanha: por que focar na questão da violência psicológica e verbal e quais são os desafios mais complexos para combater esse tipo de crime?

Como surgiu a campanha?

A campanha surgiu como iniciativa do Babbel, que é um aplicativo destinado a idiomas. Então, tem a ver com a temática desenvolvida pelo aplicativo e nós, como Movimento MeTooBrasil, nos interessamos em apoiar essa campanha, primeiro porque a gente sabe que a violência psicológica e moral é a primeira violência.

Muito raramente, muito raramente mesmo você vê uma violência doméstica começar com uma agressão física ou com a tentativa de feminicídio ou com feminicídio consumado. Existe uma escala: ela começa com xingamento, com uma agressão verbal. 

Logo, se a gente joga luz para essa fase, para esse momento da violência, nós podemos trabalhar no fortalecimento de mulheres para que elas consigam sair dessas relações de violência e também atingir a reflexão masculina à respeito desses comportamentos. 

Outro motivo para a gente jogar luz para esse problema é que esse tipo de violência ainda é muito naturalizado. Há muitas pessoas que acham que a violência doméstica é só violência física e não é. E por que é naturalizado?

Porque nós crescemos em uma sociedade, nós vivemos em uma sociedade em que a opressão do homem contra a mulher, do gênero masculino contra o gênero feminino, ou a masculinidade contra as mulheres é naturalizada.

O que se reflete nas falas de dizerem: "Homem é assim mesmo; homem se comporta assim; homem é agressivo; homem sente raiva; você tem que entender". E assim natutaliza o xingamento, como se o xingamento, a humilhação, uma depreciação fossem fatos normais de um relacionamento amoroso, assim como é o sexo, assim como é fazer programa junto, conhecer as famílias.

Então, nós queremos expor que isso não é natural, não é aceitável. É necessário que haja um desenvolvimento das capacidades emocionais dos homens e também das mulheres, primeiro para que os homens parem de cometer esse tipo de violência e, segundo, para que as mulheres consigam identificar rapidamente esse tipo de violência e se retirar dessa relação.

Um tipo de violência psicológica, por exemplo, o cara mandar você sair do carro quando ele está dirigindo e vocês estão brigando e está de madrugada, no meio da rua, ele abre a porta do carro e fala: sai.

Ele não te bateu, ele não te empurrou, ele só mandou a mulher sair. Por que isso é uma violência psicológica? Porque ele está deixando aquela mulher sozinha, na rua, de madrugada, numa situação de perigo, já que sabemos que a rua de madrugada não é um lugar acolhedor para uma mulher sozinha. Deveria, mas infelizmente não é.

Logo, é sobre essas questões que precisamos jogar luz. Sobre o comportamentos que são, historicamente, tidos como comportamentos normais como comportamentos comuns dentro de uma relação amorosa. Não é normal. Não é comum. É violência. E toda relação tem que ser focada em parceria, respeito, troca e reciprocidade, e amor evidentemente. 

Quanto aos principais desafios que a gente enfrenta atualmente é um governo anti-mulheres, anti-direitos humanos, anti-equidades, mas que tenho esperanças de que estamos avançando no debate da sociedade com relação a esse tema e muitos dos desafios que a gente encontra está na cultura, tanto a brasileiro quanto de outros países. 

Isso porque a cultura ainda é segmentada na ideia de prevalência física, intelectual e financeira de homens sobre mulheres e é justamente um desafio grande que a gente enfrenta no sentido de desnaturalizar essa estrutura.

Houve, durante muito tempo, por exemplo, o mito de que as mulheres da pré-história eram mulheres que ficavam dentro das cavernas cuidando das crianças e hoje os cientistas descobriram que na verdade não, as mulheres eram tão caçadoras, tão coletoras, tão ativas na vida da comunidade quanto eram os homens.

Então, essa estrutura que nós vivemos hoje é uma estrutura construída social e culturalmente. O que a gente tem desejado é a transformação dessa estrutura para isso a gente precisa contar com o trabalho de escolas, jornais, imprensa como um todo, da cultura, então, novelas, cinemas, séries. 

Quem sedimentou determinados estereótipos sobre mulheres, por exemplo, foi a música, foi a televisão, foram as novelas, foram as notícias de jornais. E agora precisamos de um novo olhar, que trabalhe para a disrupção desses estereótipos.

Outras iniciativas

Em alusão à data, a Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) lançou uma série de cards e também uma carta de posicionamento em suas redes sociais. A ideia é provocar a reflexão quanto aos casos de violência contra as mulheres, no Brasil, em diversos formatos. 

O material possui quatro eixos temáticos: Violência contra as mulheres negras; Violência contra a mulher e as lideranças religiosas; Violência contra as mulheres lésbicas; O Judiciário e o patriarcado.

Outra iniciativa trata-se de um evento internacional, intitulado "Unidas: Mulheres em Diálogos", que une diversas nacionalidades e trajetórias, todas com o intuito de promover ações que fortaleçam a luta feminina e feminista.

Assim, até 28 de novembro , Salvador e Berlim serão cidades-sedes do evento, realizado pela UNIDAS, Goethe-Institut e Ministério Alemão das Relações Exteriores.

O encontro terá transmissão na internet e uma programação intensa dividida em quatro blocos temáticos: “Interseccionalidade”, “Direitos das Mulheres e Igualdade de Gênero”, “Violência contra as Mulheres” e “Prevenção de Crises”.

Edição: Leandro Melito