“Alca, al carajo!” foi o grito de ordem de Hugo Chávez, em Mar Del Plata, sul da Argentina, no dia 5 de novembro de 2005, que expressou a vontade de povos dos 35 países do continente americano. A Área de Livre Comércio das Américas (Alca) era um projeto proposto desde 1991 por George H. Bush, sob o nome de Empresa das Américas, aprofundado pelo democrata Bill Clinton, mas que finalmente foi levado adiante por seu sucessor George W. Bush, a partir de 2001.
Além de ser um acordo comercial, a Alca previa uma série de mecanismos que subordinavam os governos da América Latina a Washington. Entre eles, propunha que as empresas e Estados latino-americanos priorizassem a venda de matérias-primas e produtos em geral a compradores estadunidenses, em troca da possibilidade de concorrer livremente por espaço no mercado dos EUA.
Também buscava que a moeda comum no continente fosse o dólar e que assessores da Casa Branca participassem da elaboração de novos contratos comerciais assinados por cada nação latino-americana.
O acordo previa ainda que os Estados Unidos prestassem assessoria no âmbito militar, o que abriria brechas para a instalação de bases militares na região. Este ponto se efetivou em alguns países através de acordos assinados diretamente, como a Colômbia, que alberga a maior quantidade de bases militares estadunidenses na América do Sul. Desde o primeiro pacto entre os presidentes Andrés Pastrana e Bill Clinton, em 1999, até a renovação do Plano Colômbia Cresce, entre Iván Duque e Donald Trump, o país já cedeu território para nove bases militares, movimentou US$ 10 bilhões (equivalentes a cerca de R$ 53 bilhões) em contratos estabelecidos com empresas do complexo industrial-militar dos EUA e conta com milhares de soldados estadunidenses no seu território.
Em 2001, o presidente argentino Fernando de la Rúa, durante a III Cúpula das Américas, em Miami, ofereceu a Argentina como anfitrião da próxima conferência “que aprovaria a Alca”. Mas o governo neoliberal foi derrotado naquele mesmo ano pela pressão das ruas, que levaram à renúncia do mandatário em 21 dezembro.
Outro reflexo das intenções de governos conservadores na região e dos Estados Unidos foi a série de privatizações promovidas pelo presidente Fernando Henrique Cardoso, no Brasil, como a Vale do Rio Doce em 1997, por apenas R$ 3,3 bilhões, quando somente suas reservas minerais eram calculadas em R$ 100 bilhões e a Telebrás em 1998.
No Equador, o presidente Jamil Mahuad, diante de uma crise econômica com três anos de retração do PIB, decidiu adotar o dólar como moeda oficial, desbancando o sucre, antiga moeda nacional, de 2000 até hoje.
A dolarização foi adotada também por El Salvador, em 2001, com o conservador Francisco Flores como chefe de Estado.
Já em 2003, Colômbia, Equador, El Salvador e outros nove países da região entraram no Programa de Cooperação Hemisférica (PCH), que previa a elaboração de planos de desenvolvimento econômico nacionais com a presença de diretores do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), da Organização de Estados Americanos (OEA) e da Comissão Econômica para América Latina (Cepal) a fim de preparar as condições para negociações comerciais que se abririam com a Alca.
“E o nosso continente iria se transformar em um grande ‘Estados Unidos’, ou melhor, ‘Estados Subordinados das Américas’, porque as empresas transnacionais iam tomar conta de toda nossa economia”, afirma João Pedro Stedile, membro da direção nacional do Movimento dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais Sem Terra (MST).
O advogado e dirigente do partido Consulta Popular, Ricardo Gebrim concorda que, se a Alca tivesse sido aprovada, algumas decisões seriam irreversíveis para os países e povos da região.
“Era uma cartada decisiva. Se a Alca tivesse conseguido se impor, essa situação favoreceria de tal forma os Estados Unidos, que dificultaria muito não só [o surgimento] os polos que começam a se colocar no plano mundial, mas qualquer possibilidade de desenvolvimento soberano dos países no nosso continente”, analisa.
A virada dos povos
Depois de o establishment dos Estados Unidos gastar quase uma década para preparar o território para aprovação do projeto da Alca, os povos da região começam a se organizar.
Ainda na década de 1990, o líder da Revolução Cubana, Fidel Castro, convocava os partidos de esquerda e movimentos sociais a se articularem contras as ações de ingerência dos Estados Unidos na América Latina, sobretudo num contexto de crise econômica e fim do campo socialista.
À época, Cuba já havia sido banida da OEA por influência dos Estados Unidos, assim como sofria mais de 30 anos de bloqueio econômico.
A eleição de Hugo Chávez, em 1998, na Venezuela, foi um primeiro respiro para as forças progressistas no continente. De orientação socialista, a Revolução Bolivariana serviu de apoio político e econômico para a Revolução Cubana.
“O único que negou o voto na Cúpula das Américas, no Canadá em 2001, foi o comandante Hugo Chávez. Ele se absteve de votar, porque ali foi declarado que em 2005 seria formalizada a área de livre comércio” recorda o ex-chanceler venezuelano Elias Jaua.
A partir desse evento, Chávez propõe uma alternativa à Alca, que mais tarde seria chamada de Alternativa Bolivariana para a Nossa América (Alba). Começa aí o período considerado por alguns analistas de “a década ganha”, com governos progressistas que promoveram o fortalecimento da América Latina como um bloco.
“Chávez disse 'não é suficiente dizer não à Alca, não ao neoliberalismo, há que se construir uma alternativa'. E para isso se exige construir uma correlação de forças que a torne viável”, detalha Jaua.
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A ascensão de Chávez, assim como de Nestor Kirchner, na Argentina; Fernando Lugo, no Paraguai; Rafael Correa, no Equador; Evo Morales, na Bolívia; Daniel Ortega, na Nicarágua; Tabaré Vásquez, no Uruguai; e Lula, no Brasil; veio sustentada por uma base social que já se organizava em movimentos populares. Algo fundamental para que, em apenas quatro anos, conseguisse desmontar a força do projeto de Clinton e Bush.
“Acredito que esse movimento contra a Alca ajudou a denunciar os interesses do imperialismo estadunidense, os interesses com as privatizações e isso foi criando um caldo político que depois nos ajudou a derrubar aqueles governos pró-EUA e criar uma nova onda de governos progressistas”, assegura o líder do MST.
Ricardo Gebrim também concorda que a receita de sucesso da campanha “Não à Alca” foi a aliança entre partidos políticos, movimento popular organizado e governos de esquerda.
No Brasil, cerca de 60 entidades, entre elas o MST, a Central Única dos Trabalhadores (CUT)e a União Nacional dos Estudantes (UNE), organizaram um plebiscito popular, no qual 98% dos mais de 10,1 milhões de votantes rejeitaram a Área de Livre Comércio.
Além disso, entre os dias 1º a 5 de novembro de 2005, foi organizada a Cúpula dos Povos, que partiu com uma marcha de Buenos Aires até Mar Del Plata com debates e atividades que denunciavam os interesses econômicos e militares dos EUA e repudiavam a presença de Bush na IV Cúpula das Américas.
“Lula, Chávez e Kirchner foram porta-vozes nesse momento, mas todo o continente se levantou contra. Tanto é que a atividade em Mar del Plata em 2005 foi para enterrar a Alca”, relembra Stedile.
Aliança Bolivariana
Já em 2004, Cuba e Venezuela lançaram a Alternativa Bolivariana para Nossa América como uma articulação entre governos e organizações de esquerda da região. Mais tarde, a Alba se consolidaria entre oito Estados como Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América – Tratado de Comércio dos Povos (Alba-TCP).
Já as organizações sociais se mantiveram articuladas na rede Alba Movimentos, reunindo-se anualmente e mantendo uma sede da organização na capital argentina.
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Para o líder sem-terra, a unidade de movimentos populares de todo continente, é um reflexo de como saíram fortalecidos da campanha contra a Alca. No entanto, a situação atual impõe novos desafios.
A “década ganha” terminou com uma série de eventos, desde golpes parlamentares, casos de perseguição judicial, golpes militares e campanhas financiadas pelos Estados Unidos a fim de derrubar governos que buscavam estabelecer suas relações exteriores com maior autonomia, fortalecendo um bloco alternativo à potência econômica.
Stedile identifica que nesse período a América foi disputada por três projetos políticos distintos: do neoliberalismo, com a Alca; o projeto do neodesenvolvimentismo, que propunha a conciliação entre classe trabalhadora e empresariado, para aumentar a industrialização, o emprego e a distribuição de renda, como no Brasil, na Argentina e no México; e o terceiro que era o projeto de integração popular e econômica de todo o continente, a Alba.
“O agravamento da crise capitalista mundial impôs para o nosso continente uma crise dos três projetos. Nós enterramos a Alca, mas o neoliberalismo segue aí na Colômbia, Peru e Chile. O neodesenvolvimentismo está em crise, tanto é que perdemos eleições no Brasil, agora se recupera na Argentina, e a própria Alba-TCP também está em crise”, comenta o líder do MST.
Apesar de vitórias eleitorais no México, na Argentina e na Bolívia, assim como a conquista do plebiscito constituinte no Chile, expressarem uma rearticulação do campo popular, Ricardo Gebrim sinaliza que é preciso revisar os limites dos governos do início do século para avançar na construção de sociedades mais igualitárias.
“Podemos ter vitórias pontuais, mas elas estão inseridas no mesmo problema histórico, essa dificuldade de resgatar um projeto estratégico. Se nós não respondermos isso também no terreno da teoria, não só nas experiências concretas, nós vamos nos deparar com os problemas que enfrentamos naquela janela de governos progressistas que acabou sendo derrotada”, comenta o advogado.
A vitória eleitoral de Joe Biden abre um novo capítulo para as relações entre Estados Unidos e as nações latino-americanas. No caso da Venezuela, o democrata mantém seu apoio ao deputado Juan Guaidó, mas afirma que as sanções foram “ineficientes” no objetivo de derrubada de Nicolás Maduro.
O ex-ministro venezuelano afirma que, talvez, o novo presidente dos EUA diminua a pressão contra a América Latina, mas destaca que foi a gestão Obama-Biden que executou os planos desestabilizadores que derrubaram uma dezena de governos anti-imperialistas no mundo.
“Somente os povos com suas próprias forças podem retomar o caminho do que construímos e ir além”, conclui Elias Jaua.
Edição: Rodrigo Durão Coelho