O Peru vive há dez dias em intenso clima de instabilidade política, desde que o Congresso do país destituiu o então presidente Martin Vizcarra por “incapacidade moral para governar”. Seu sucessor de forma interina, Manuel Merino, ficou apenas seis dias no cargo e se demitiu após as denúncias de violência policial contra os protestos que ocorreram por mais de uma semana, sobretudo na capital, Lima. No último sábado, Merino foi substituído por Francisco Sagasti, que se comprometeu estabilizar a nação sul-americana.
Por detrás destes diversos nomes e movimentações, há uma trama complexa de décadas de corrupção e um sistema político corroído e deslegitimado pela população. Nesse contexto, os protestos se dão mais por esta crise estrutural do que por uma defesa do presidente destituído, Vizcarra.
Motivações dos protestos
Os peruanos têm ocupado às ruas constantemente para protestar desde o impeachment de Vizcarra. Embora o ex-presidente esteja longe de representar os setores populares e progressistas, sua destituição é considerada um golpe de Estado parlamentar.
Assim, os protestos indicam uma rejeição do sistema político que orquestrou o impeachment, como comenta Lucia Alvites, integrante do coletivo La Junta e candidata a deputada pelo Partido Novo Peru.
Em entrevista ao Peoples Dispatch, a militante definiu o sistema político peruano como “corrupto, ultrapassado e subordinado aos interesses da grande capital".
Para os manifestantes, as acusações contra Vizcarra deveriam ter sido tratadas pelo Poder Judiciário e não em uma audiência do Congresso do país, que consideram “apressada”.
O pedido de impeachment foi apresentado em outubro pelos parlamentares opositores após a imprensa divulgar depoimentos de colaboradores do Ministério Público que denunciaram o suposto pagamento de propina a Vizcarra pela construtora Obrainsa em troca da licitação de uma obra de irrigação quando o político era governador de Moquegua, região do Sul do Peru.
A acusação faz parte da investigação do chamado “Clube da Construção”, como é denominado o esquema de empresas do setor que atuaram como cartel e dividiram as licitações de obras públicas entre 2002 e 2016.
Apesar das acusações sobre o ex-presidente, segundo a Agência France Presse, pesquisas mostram que 75% dos peruanos queriam a continuidade do governo. Já o Congresso enfrenta 59% de desaprovação.
Em 2018, Vizcarra anunciou um pacote com reformas para combater os casos de corrupção. As medidas foram aprovadas em referendo popular e, caso fossem aprovadas pelo Congresso, alterariam a forma de financiamento dos partidos políticos, bem como removeriam a imunidade parlamentar dos atuais congressistas – que rejeitaram o pacote.
Na época, dos 130 parlamentares, mais de 60 estavam envolvidos em acusações de corrupção. A oposição tinha a maioria e o partido com mais cadeiras era o Força Popular, força de direita fundada por Keiko Fujimori, filha do ex-ditador Alberto Fujimori. Ela está presa desde outubro de 2018, condenada por um esquema de lavagem de dinheiro.
A não aprovação das medidas propostas pela reforma constitucional de Vizcarra levou a um desgaste na relação entre o Executivo e o Legislativo. Na época, o presidente chegou a dissolver o Congresso Nacional pelas reformas terem sido recusadas.
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Na análise dos movimentos populares do país, os grupos de direita teriam usado o impeachment para obter vantagem política e tomar o poder de uma forma antidemocrática.
Neste cenário, a repressão policial às manifestações em todo o país tem sido intensa. A Defensoria do Povo, que acompanha os protestos, relata a morte de dois jovens, de 22 e 24 anos, que participavam dos protestos contra o impeachment, além de mais de 200 feridos em decorrência da violência policial.
Corrupção histórica
O presidente destituído em novembro deste ano ficou quase dois anos no poder, já que assumiu após a renúncia de Pedro Pablo Kuczynski em 2018, um dia antes do Congresso votar seu impeachment por lavagem de dinheiro no caso Odebrecht.
O envolvimento de presidentes peruanos em casos de corrupção está longe de ser uma novidade no país, já que é uma realidade sucessiva desde a ditadura de Fujimori, que terminou em 2000 após o ditador anunciar sua renúncia via fax.
Todos os quatro presidentes após o fim do regime de Fujimori também estiveram envolvidos em casos de corrupção, desta vez, no marco da Operação Lava Jato.
Alejandro Toledo, que governou o país entre 2001 e 2006, foi condenado no caso Odebrecht e ficou foragido até sua captura em julho de 2019, nos Estados Unidos, onde cumpre pena até ser extradito.
Alan García, presidente de 1985 a 1990 e de 2006 a 2011, também foi processado na Lava Jato por supostos subornos à construtora brasileira e se suicidou em abril de 2019 antes de ser detido.
Por sua vez, Ollanta Humala, cujo mandato ocorreu entre 2011 e 2106, foi condenado em 2017 por lavagem de dinheiro e associação ilícita, acusado de receber US$ 3 milhões da Odebrecht em sua campanha presidencial. Humala está em liberdade condicional e recentemente anunciou sua candidatura para 2021.
Pandemia e eleições
À profunda crise política que marca o país, soma-se uma crise social e econômica, além da atual crise sanitária mundial devido ao novo coronavírus. O Peru tem uma das mais altas taxas de mortalidade por covid-19, com 934 mil casos confirmados da doença e 35,1 mil mortes, em uma população de 32 milhões de habitantes.
As próximas eleições gerais do país estão marcadas para abril de 2021. No entanto, em meio à atual crise, uma das preocupações seria um eventual adiamento do pleito pelo uso da pandemia como estratégia política para setores da direita.
Mas tanto este cenário quanto as reivindicações concretas dos manifestantes nas ruas do país para esta data ainda não estão definidos.
Edição: Rodrigo Chagas