Equidade

Lei de equidade de gênero nos meios de comunicação avança no parlamento argentino

Impulsionado por comunicadoras, projeto foi aprovado pelo Senado e aguarda para entrar em pauta na Câmara dos Deputados

Brasil de Fato | Buenos Aires, Argentina |

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As comunicadoras argentinas se organizaram nos últimos anos e denunciam a hegemonia de homens brancos e cisgênero nos meios de comunicação - Romina Morua

Quando uma rádio comercial de Buenos Aires lançou sua programação para 2020, a imagem chamou a atenção: todos os locutores e jornalistas eram homens. O caso não passou despercebido. Com a repercussão negativa nas redes sociais e o mal-estar das jornalistas da rádio, ocultadas da publicidade, a resposta dos diretores foi emblemática: “Não percebemos”.

Assim, uma luz se acendeu. Se o patriarcado naturaliza, então, que se desarmem suas estruturas. A jornalista Agustina Paz Frontera, uma das fundadoras do portal de notícias LatFem, era uma das últimas aquele dia na redação, quando lançou a ideia a uma companheira: “E se fazemos uma lei para obriga-los a nos incluir?”
 

Semana passada,  as comissões de Mulheres e Diversidades e Comunicação e Informática aprovaram em plenário um projeto de lei de equidade de gênero nos meios de comunicação, públicos e privados e em qualquer plataforma, apresentado pela senadora Norma Durango (FdT).

É um dos últimos passos para a aprovação da Lei, que já foi aprovada no Senado e aguarda para entrar em pauta na Câmara dos Deputados.

Além da paridade 50/50 entre homens e mulheres, a lei estabelece uma cota de pelo menos 1% para pessoas travestis, trans e intersex. O texto inclui pontos levantados em encontros nacionais convocadas pelo LatFem e a deputada federal Mónica Macha (FdT).

A ideia era escutar grupos diversos e entender as demandas, enumerar as vozes não representadas, e projetar uma lei que poderia reparar faltas históricas em ações afirmativas nos meios de comunicação.

“Faltam mulheres pobres, negras, lésbicas, travestis, homens e mulheres trans, faltam corpos gordos e magros nos meios de comunicação”, aponta Macha.

“É chave articular a desigualdade social, de gênero e o racismo social. A perspectiva do autor gera outro modo de comunicar e outra agenda de notícias. É complexo, porque o que noticiam os meios é lido como ‘a única realidade’”.

A partir dos encontros federais, dos quais participaram cerca de 700 pessoas de distintos grupos sociais, as impulsoras do PL entenderam o conceito de “paridade” parte de um ideário binário, e, então, passaram a falar em “equidade”.

A lei como ferramenta de reparação

O projeto de lei é um passo em direção a uma comunicação mais democrática. Os números mostram que as mulheres ainda são minoria nas mídias, e menos ainda as que ocupam cargos diretivos. Dados sobre outras diversidades de gênero e sexuais são praticamente inexistentes. Se não há representatividade nos meios, então, o que se está narrando? Quem dita a agenda dos temas considerados importantes nos meios de comunicação?

A hegemonia dos meios de comunicação ainda é o homem branco heteronormativizado (Mónica Macha)

Os velhos padrões de narrativas hegemônicas, viciadas na fórmula patriarcal, passam cada vez menos sem punições, como os casos de violência de gênero noticiados com detalhes mórbidos ou culpabilizando a vítima por aspectos físicos ou conduta pessoal, por exemplo.

Se esse tipo de narrativa aparece com menos frequência, é um reflexo da força dos movimentos feministas da Argentina, que ganharam corpo nos últimos anos.

Foram dois grandes marcos, na militância e na agenda midiática: a manifestação multitudinária contra a violência de gênero do Ni Una Menos, em 2015; e o avanço ao Senado do projeto de lei pela interrupção voluntária da gravidez, em 2018.

Também se reflete na capacitação de comunicadores e dos próprios veículos em tratar temáticas que se conectam de maneira mais explícita à agenda feminista.

"Tudo é revisto o tempo todo", afirma a jornalista Sandra Miguez, especializada em sáude, gênero e direitos humanos.

"As editorias que utilizamos, falar sobre estereótipos, de gêneros. Isso é uma questão notável: antes dizíamos 'gênero', agora falamos em "gêneros", também em 'feminismos'. São incorporações e novas variáveis de análise, que tratam dos direitos das pessoas", afirma.

Segundo a Defensoria Pública, a Argentina é o país da América Latina com mais editoras de gênero nos meios de comunicação. A figura da editora de gênero está, inclusive, em meios de narrativa hegemônicos, como Clarín, TN, e meios públicos como a agência Télam.


A forma o debate sobre o aborto foi instalado na Argentina "é uma escola" para impulsionar leis feministas, segundo a deputada Macha. / Nuria Álvarez

Ainda assim, na Argentina, as mulheres são apenas 30% das pessoas que trabalham em empresas jornalísticas – apesar de serem 64% das estudantes de comunicação, segundo uma pesquisa da Comunicar pela Igualdade e a Fundação para o Desenvolvimento de Políticas Sustentáveis (Fundeps). Quando presentes, enfrentam o chamado teto de cristal e não chegam aos cargos mais altos: 78% dos diretores dessas empresas são homens.

Além de pensar a equidade entre profissionais em exercício, a reparação a longo prazo de apenas 37% das mulheres em meios de comunicação em todo do mundo, segundo os dados do Global Media Monitoring, faz pensar também na formação dos futuros jornalistas. Além de comunicadora, Miguez também é professora universitária de comunicação na província de Entre Ríos, e destaca que muitas jornalistas se fizeram feministas nestes últimos anos.

“A temática de gênero não foi uma demanda da academia, foi um reflexo dos feminismos. Nos últimos anos, as universidades começaram a estabelecer áreas de gênero, programas, seminários optativos. Mas ainda não há uma perspectiva transversal nas grades curriculares”, afirma Miguez, que destaca que jornalistas têm buscado especializações e pós-graduações em gênero.

Perspectivas

Os dados mundiais e nacionais contrastam com um dos objetivos da Plataforma de Ação de Pequim, adotado por membros da ONU na IV Conferência Mundial sobre as Mulheres, em 1995: aumentar a participação de mulheres nos meios de comunicação. Ainda assim, uma lei que determine a paridade nos meios de comunicação parece ser inédita no mundo.

“Consultamos especialistas em comunicação e políticas públicas, e não há no mundo uma proposta legislativa do tipo”, afirma Frontera. “Com os tempos lentos da história e das transformações culturais, quantos anos mais teremos que esperar para alcançar a igualdade de inclusão?”

A caminho de um projeto de lei pensado, projetado e impulsionado por feministas, instala-se um debate, uma lição já aprendida pelas feministas argentinas.

“Para que a lei saia em algum momento, é preciso instalar a discussão”, reflete a deputada Macha. “Nesse sentido, todo o trabalho da campanha pelo aborto legal, seguro e gratuito foi uma escola impressionante. Porque elas começaram assim, e acho que tudo isso implica aprender de experiências prévias.”

Apesar da questão racial ter sido um ponto contemplado no projeto de lei redigido por Mónica Macha a partir dos grandes encontros nacionais, esse ponto não foi incluído no texto apresentado no Senado, pela senadora Norma Durango (projeto este que, feito em paralelo ao de Macha, avançou mais rápido na aprovação). A expectativa é que o artigo seja incluído como modificação, uma vez aprovada a lei.

Edição: Leandro Melito