Paulinho Paiakan foi a vítima mais recente da covid-19 entre os povos indígenas. Liderança do povo Kayapó, ele faleceu no início da manhã desta quarta-feira (17) após lutar contra a doença por sete dias em uma Unidade de Terapia Intensiva, no Hospital Regional do Araguaia, município de Redenção, no Pará.
Bep’kororoti Payakan, seu nome na língua do povo Kayapó, ficou famoso nas décadas de 1980 e 1990 ao lutar pela inclusão dos direitos indígenas na Constituição Federal de 1988, pelo cancelamento do primeiro projeto da Hidrelétrica de Belo Monte (denominada de Kararô em 1989) e pela demarcação da Terra Indígena Kayapó (1991).
O corpo do cacique estava marcado para ser velado em um ritual na aldeia A-Ukre (a 280 quilômetros de Redenção). Maial Paiakan, filha de Paulinho, afirmou à reportagem da Amazônia Real que a família aguardava o corpo do pai. “Estamos viajando para levar o corpo para aldeia”, explicou ela, a caminho de A-Ukre. Suas três filhas, Kokanã (Tânia), O.é e Maial devem participar do ritual com a viúva, Irekran Paiakan.
Organizações e lideranças relembraram a história de luta, a relevância e a inspiração de Paiakan para o movimento indígena em notas e depoimentos nas redes sociais.
“Paiakan se foi como as centenas de vidas indígenas que estamos perdendo para pandemia da covid-19. É com tristeza e revolta que acompanhamos a perda de tantas vidas. Nossos anciões são sagrados e fonte de sabedoria dos povos indígenas”, lamentou, em nota, a Articulação dos Povos indígenas da Brasil (APIB).
A APIB, que monitora o impacto da pandemia e dos casos confirmados e óbitos entre os povos indígenas, informou que além da liderança Kaiapó, 287 indígenas de 103 etnias foram vítimas do vírus até o dia 16 de junho. Cerca de 5.484 pessoas estão infectadas nas aldeias indígenas do Brasil, segundo a APIB.
“Payakan nunca deixou de usar sua inteligência e voz para lutar pelos povos indígenas. Sempre foi atuante na sua região, nos assuntos relacionadas aos Kayapó. Em 2016, foi eleito Presidente da FEPIPA, pois estava engajado na luta dos povos do Pará, e com frequência em Brasília em diversos movimentos, tendo presença marcante nos Acampamentos Terra Livre”, anotou a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab).
Com um vídeo postado em sua rede social, o cineasta Kamikia Kisedje relembrou os atos de Paiakan, como a construção da aliança entre ecologistas e indígenas. “Desde criança vejo, acompanho e admiro o trabalho e as lutas de Bepkororoti, mais conhecido como Paulinho Paiakan. (…). Grande liderança Kayapo, Paulinho Paiakan junto com seu tio Raoni vem lutando desde jovem pela proteção dos povos indígenas e a preservação da floresta. Também organizou junto com Raoni o grande Encontro em Altamira /PA, em 1989.”
O advogado Eloy Terena relembrou do exemplo deixado pela liderança aos mais jovens. “Pai, líder e guerreiro dedicado às lutas por direitos dos povos indígenas. Seu legado deixa na história e na vida dos povos uma construção de muita força. Reconhecido internacionalmente como grande defensor da floresta e seus povos, Paiakan era uma fonte de inspiração na luta para todos nós”, escreveu no Facebook.
O titular da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), Robson Silva, informou em um vídeo, antes de sua viagem à Terra Indígena Vale do Javari, que “a Sesai está tomando todas as providências para que o enterro ocorra da forma que a cultura indígena exige”.
Engolido pela imprensa selvagem
Bep’kororoti foi criado para ser uma liderança. Na juventude, foi um dos poucos jovens que, além da cultura Kayapó, puderam estudar em Belém, capital do Pará. Poucos Gorotire, um dos grupos que formam o povo Kayapó, falavam português tão fluente quanto Paiakan.
Sua militância política teve apoio de Dorothy Stang, a religiosa americana assassinada em 2005 por grileiros em Anapu (PA). Foi ela quem ensinou Paulinho Paiakan a falar inglês. Ao dominar essa língua, conquistou a opinião pública internacional, levando a causa indígena para o resto do mundo. Sua luta rendeu Prêmios como o Global 500, concedido pelas Organização das Nações Unidas (ONU).
Foi a partir da amizade com antropólogos como David Maybury Lewis e Darrel Posey, que Paulinho Paiakan começou sua militância ambiental em 1982. Cinco anos depois, já embarcava em sua primeira viagem internacional. “Lembro que já tinha falado que iríamos sofrer com as mudanças climáticas naquela época, e ninguém acreditou. Branco não escuta indígena”, disse o líder indígena à Amazônia Real.
“Ele lutava muito, mas quem o conheceu sabe o quanto ele era um homem pacífico. Era um guerreiro intelectual”, contou o amigo da família e ex-presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) Sydney Possuelo à Amazônia Real, ao saber da morte de Paulinho.
Inteligente e visionário, Bep’kororoti, incomodava o status quo nacional embalado pelo desenvolvimentismo inaugurando no regime militar. Foi um dos primeiros líderes indígenas a buscar por alternativas sustentáveis para a sobrevivência das aldeias, e se opôs à indústria do mogno e garimpos de ouro que invadia as terras Kayapó.
“Ele buscava todo tipo de projeto, chegou a levar uma produção sustentável de óleo de castanha que foi feito com apoio da empresa de cosmético Body Shop, uma coisa muito inovadora que até hoje é algo incrível de se pensar”, afirma Sydney Possuelo.
Presença em chamado de Raoni
A última fala pública de Paulinho Paikan foi no encontro promovido pelo cacique Raoni Kayapó, na Aldeia Piarauçu, da Terra Indígena Capoto Jarina, em janeiro de 2020. Falando aos jovens sobre os riscos que o excesso de contato com o mundo branco poderia trazer, Paulinho refletiu sobre a influência do dinheiro no mundo atual.
“Nenhum ser humano está sendo resistente para lidar com o dinheiro, é um vírus que nos corrompe se não lutarmos contra. A vida é mais do que ouro. As pessoas precisam entender bem o significado das ameaças que estão chegando às aldeias por causa do desejo e do dinheiro”, disse à Amazônia Real, durante o evento.
Nos últimos anos, Be’pkororoti dedicava seus dias a alertar os jovens sobre como lidar com o mundo dos brancos. Ele sabia o preço que uma liderança pagava caso incorresse no erro de envolver-se como o mundo dos não indígenas.
Em 1992, Paulinho Paiakan era um dos nomes mais esperados na Conferência Mundial do Clima, a Rio-92, que aconteceu no Rio de Janeiro. Mas foi impedido após a repercussão de uma reportagem mal apurada da revista Veja, que o acusou de estuprar Silvia Letícia da Luz Ferreira, de 18 anos. Assinada pelos jornalistas Laurentino Gomes, hoje autor de best-sellers sobre a história do Brasil, e Paulo Silber, o texto foi apurado por telefone e tomava como base no inquérito do delegado José Barbosa de Souza.
“Em vez de ir à Conferência, embrenhou-se nas matas do sul do Pará para escapar da polícia que o caçava”, dizia o trecho da reportagem de Veja, que o expôs na capa com o título “O selvagem”. Procurados pela reportagem, os autores da reportagem não se manifestaram até a publicação desta matéria.
“Nunca houve estupro e canibalismo”, afirma Sydney Possuelo, que na época dirigia a Funai. “Aquilo foi uma campanha difamatória contra ele e todo o movimento indígena.”
Paiakan e sua mulher Irekran foram inocentados por falta de provas pelo juiz de primeira instância. Embora a Justiça jamais tenha condenado Paiakan pelo crime de estupro, ele foi condenado em 2006 por lesão corporal e atentado ao pudor, por supostamente ter colocado a mão na vagina de Letícia.
A partir desse caso, o Superior Tribunal Federal passou quase três décadas discutindo o imbróglio jurídico da questão do indígena ser inimputável.
Após o estardalhaço das matérias sobre estupro e canibalismo, o caso caiu no ostracismo e até hoje poucas pessoas sabem que Paiakan nunca foi condenado por estupro.
Um líder sem cocar
Com a repercussão do caso, Paulinho Paiakan, a mulher Irekran e as três filhas se isolaram em uma casa, distante alguns quilômetros da sede da aldeia Krenediá, na região de Redenção. Só em 2012 Be’kororoti voltou a participar de atividades políticas com o povo Kayapó. Ele acompanhou a comitiva indígena na Conferência Mundial do Clima – Rio+20.
Na época, Paiakan eram um dos poucos homens de seu povo sem cocar. “Eu tenho direito de estar aqui. Sou indígena, sou natureza e um povo da floresta. Eu vou continuar lutando por o que acredito, e deixa o branco falar”, disse em uma breve conversa nas calçadas da tenda dos Povos, no Rio de Janeiro, durante um dos discursos de seu primo mais velho, que tem status de avó na cultura indígena, Raoni Kayapó. Era o retorno tímido de um ativismo interrompido.
As três filhas de Paulinho Paikan, já adultas, também tornaram-se lideranças de seu povo e com destaque no movimento indígena.
“Meu pai enfrentou meus avós para que eu e minhas irmãs estudássemos. Ele teve esse olhar de futuro, e mesmo com o estudo também nos fazia participar de todos os ritos e festas dos Kayapó. Eu era a mais velha e observava muito esse esforço dele em nos criar conscientes e preparada para o mundo”, afirmou O.é Paiakan à Amazônia Real.
Ao ser questionado sobre o crime e as acusações de Letícia, o cacique aceitou falar do tema durante o encontro da Aldeia Piaraçu à Amazônia Real.
“Sim, foi crime o que fiz, foi violência contra a mulher. Me arrependo muito. Foi um grande erro tudo aquilo, mas eu paguei passei anos com isso. E agora eu tenho direito de falar sobre o que eu acredito. O branco pode ficar me apontado, mas eu vou falar sobre o meu direito como indígena”, disse um Paulinho Paiakan de cocar.
Be’kororoti foi silenciado duas vezes por vírus trazidos pelos ocidentais: primeiro, os vícios humanos; depois, a covid-19.