O pensamento do educador pernambucano Paulo Freire influenciou as lutas antirracistas na África do Sul que levaram à queda do apartheid, regime de segregação que vigorou no país até 1998. Essa contribuição fica evidente no dossiê “Paulo Freire e as lutas populares na África do Sul”, publicado pelo Instituto Tricontinental de Pesquisa Social em novembro.
O material reúne depoimentos de militantes sul-africanos e demonstra que as ideias do educador estão na base da formação do Black Consciousness Movement (em português, Movimento da Consciência Negra), do movimento sindical e de organizações que compõem a United Democratic Front (em português, Frente Democrática Unida).
Coordenador do Tricontinental na África do Sul, Richard Pithouse ressalta que a conjuntura mudou, mas o pensamento freireano continua relevante no país. “Freire nos dá esperança de reconexão com um tempo em que havia lutas de massa genuínas por todo o país, e não como agora, em espaços específicos”, afirma, em entrevista ao Brasil de Fato.
“Hoje há uma ideia de que são as elites que devem pensar, organizar, liderar os processos, enquanto os oprimidos, como um todo, devem segui-las. Freire apresenta um caminho totalmente diferente”, ressalta. “Ele mostra o povo participando, de fato, nos espaços de trabalho, e apresenta outras relações possíveis entre o intelectual treinado na universidade e as pessoas que não tiveram a mesma oportunidade”.
Nascido em 1921, Freire enxergava o papel da comunidade e das organizações de trabalhadores como vitais na formação da consciência crítica, necessária para superar a dominação e a dependência dos oprimidos.
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O dossiê mostra que o interesse do educador sobre os efeitos da colonização o aproximou da obra de intelectuais marxistas africanos como Frantz Fanon e Amílcar Cabral. Ele próprio dizia que, “como nordestino, estava de certo modo culturalmente ligado à África”.
Perseguido pela ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985), o pernambucano visitou seis países africanos: Zâmbia, Tanzânia, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Angola e Cabo Verde. Além de desenvolver programas de alfabetização de adultos, reuniu-se com o Movimento Popular de Libertação da Angola (MPLA), a Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) e o Partido Africano para a Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC).
Pithouse explica que a influência de Freire no continente não deve ser atribuída a alguma “novidade” trazida por suas teorias, em relação a pensadores africanos do século 20. “Mas, no seu compromisso com a intersubjetividade, ao propor um ‘encontro político’ baseado no reconhecimento mútuo das personalidades dos indivíduos, ele dialogou e se encaixou perfeitamente com vários ‘modos africanos’ de compreensão do mundo”, analisa.
Driblando a censura
A obra mais conhecida de Paulo Freire, A pedagogia do oprimido, escrita durante exílio no Chile em 1968, foi censurada na África do Sul durante o apartheid. Porém, circularam cópias piratas, e o livro já era usado em projetos de alfabetização de adultos no país, pelo Movimento Cristão Universitário, no início dos anos 1970.
Ou seja, é possível que educadores populares sul-africanos tenham lido e se inspirado na obra antes mesmo dos brasileiros. A primeira edição de A pedagogia do oprimido só seria publicada no Brasil em 1974, após seis anos de banimento pela ditadura.
Freire enfatizava que “sem um senso de identidade, não pode haver luta real”, o que provocou repercussões no Movimento de Consciência Negra, segundo o dossiê, que se organizava para enfrentar a supremacia branca.
Os métodos freireanos também influenciaram o instituto cristão Black Community Projects (em português, Projetos da Comunidade Negra), que bebeu da fonte da teologia da libertação e contribuiu para dar um sentido emancipador e antirracista às práticas religiosas.
As greves de Durban, em 1973, consideradas um ponto de inflexão na resistência ao apartheid, deram origem a alguns dos sindicatos mais combativos do país. Na mesma trincheira, se articularam intelectuais influenciados por Paulo Freire: muitos foram mortos na luta pela libertação do país; outros tantos sobreviveram e foram decisivos para a queda definitiva do regime de segregação, em 1994.
“Nunca acredite nos fascistas”
O dossiê do Tricontinental reúne o testemunho de alguns desses lutadores e reafirma a centralidade das ideias freireanas mesmo após o fim do apartheid. Afinal, a luta contra o regime não significou automaticamente o fim da opressão, e o programa de reforma agrária estatal mostrou-se distante da proposta emancipatória original.
Uma das primeiras sementes que floresceu foi a Faculdade dos Trabalhadores, em Durban, projeto de educação sindical formado por professores comprometidos com os métodos de Freire. Em 1986, também em Durban, foi aberto o Umtapo Center, espaço de formação crítica fundado para reagir ao aumento da violência política nas comunidades negras.
A teologia da libertação, introduzida no país pela obra do educador brasileiro, está na raiz do Programa de Terras da Igreja, fundado em 1997, que associa a luta camponesa por reforma agrária popular à prática religiosa.
Hoje, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) colabora para manter viva a chama do pensamento de Paulo Freire no país africano. Os camponeses brasileiros construíram relações estreitas com o Sindicato Nacional dos Metalúrgicos da África do Sul (NUMSA, na sigla em inglês) e com o Abahlali baseMjondolo, respectivamente o maior sindicato e o maior movimento popular do país.
Militantes das duas organizações já participaram de cursos da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), escola de formação política do MST em Guararema (SP), e cruzam o Atlântico de volta à África do Sul com novas reflexões sobre a obra inesgotável do educador brasileiro.
Ao saber pelo Brasil de Fato que Paulo Freire e sua obra são alvo de calúnias por parte de Jair Bolsonaro (sem partido) e seus apoiadores, Richard Pithouse manda um recado aos brasileiros que não tiveram contato com a obra do educador.
“Existe uma razão pela qual as ideias de Paulo Freire circularam por tantos países, e existe uma razão pela qual Bolsonaro é repudiado ao redor do mundo. Nunca acredite nos fascistas. Descubra por si mesmo”, sugere.
Edição: Rogério Jordão