América Latina

Retorno do MAS abre caminho para apuração dos crimes do governo golpista da Bolívia

Conheça as acusações contra Jeanine Áñez e os ministros que assumiram o país interinamente após o golpe de 2019

Brasil de Fato | Florianópolis (SC) e Caracas (Venezuela) |

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Jeanine Áñez [centro] é um dos principais alvos e sequer compareceu à posse de Arce no domingo - AFP PHOTO / BOLIVIAN PRESIDENCY

O retorno do Movimento ao Socialismo (MAS) ao governo do Estado Plurinacional da Bolívia deve abrir caminho para o julgamento de integrantes do alto escalão do governo de facto, que vigorou entre 12 de novembro de 2019 e 7 de novembro de 2020.

No discurso de posse, no último domingo (8), o presidente eleito Luis Arce criticou as perseguições jurídicas e os massacres comandados pelo governo da presidenta autoproclamada Jeanine Áñez.

Jeanine Áñez e vários dos ministros que assumiram cargos após o golpe contra Evo Morales (MAS) são acusados de violência, corrupção e ataques à democracia boliviana desde o golpe do ano passado. Eles também responderão a processos por envolvimento em compras superfaturadas de equipamentos para combater a pandemia e utilização o aparato do Estado para benefício próprio.

O Brasil de Fato reuniu processos em andamento e casos em que já há sinalização do Parlamento pela abertura de investigação. Confira:

Jeanine Áñez

A ex-presidenta interina deve ser investigada pelos massacres de Senkata e Sacaba, que deixaram 26 vítimas fatais em novembro de 2019, logo após o golpe.

Além de não lamentar publicamente o ocorrido, ela promulgou o Decreto Supremo (DS) 4078, para tornar imunes os membros das Forças Armadas, de forma que os autores dos massacres não pudessem ser investigados, julgados e condenados.

No último dia 30 de outubro, a Assembleia Legislativa Plurinacional da Bolívia aprovou um relatório que recomenda o julgamento de Áñez “pelos crimes de resoluções contrárias à Constituição e às leis, violação de deveres, genocídio, homicídio, lesões graves, lesões seguidas de morte, associação criminosa, privação liberdade e desaparecimento forçado de pessoas.” 

Além dos ministros citados abaixo, devem ser investigados pelos mesmos crimes Karen Longaric, ex-chanceler, Jerjes Justiniano, ex-ministro da Presidência, José Luis Parada, ex-ministro da Economia, Álvaro Guzmán, ex-ministro da Energia, Yerko Nuñez, ex-ministro da Presidência além de Williams Kaliman, ex-comandante em chefe das Forças Armadas.

Segundo o relatório, haveria indícios da participação ou conhecimento de todos eles nos massacres ocorridos após o golpe contra Evo Morales.

Sobre os crimes contra a democracia, a ex-presidenta interina deve ser investigada pelo descumprimento da promessa que convocar eleições em até 90 dias. Embora a pandemia tenha sido utilizada como justificativa em dois adiamentos do calendário eleitoral, se o prazo inicial fosse cumprido, o pleito poderia ocorrer antes mesmo do primeiro caso de coronavírus na Bolívia.

Áñez pode ainda ser implicada em qualquer dos processos mencionados a seguir, uma vez que se comprove seu conhecimento e anuência em delitos praticados por ministros durante sua gestão.


Trabalhadores protestam contra Jeanine Áñez, em agosto, por não cumprir a promessa de convocar eleições no primeiro semestre / AFP

Marcelo Navajas

A compra superfaturada de respiradores durante a pandemia levou à prisão preventiva do ex-ministro de Saúde, Marcelo Navajas, em maio.

Foram 170 respiradores artificiais adquiridos da fabricante espanhola GPAInnova, que indicou que o valor unitário era de US$ 6,5 mil, enquanto os documentos oficiais registraram um desembolso de US$ 28 mil por equipamento – uma diferença de cerca de R$ 845 mil, ao todo.

A aquisição foi financiada pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), e o caso segue sendo investigado pelo Ministério Público boliviano. 

Arturo Murillo 

Ex-ministro de Governo durante o governo golpista, Murillo é considerado um representante da ala mais conservadora e violenta da direita boliviana. Durante a gestão dele, o gasto com armamento passou de US$ 850 mil para US$ 15 milhões, um salto de 1.664%.

O ex-ministro foi acusado de comprar gás lacrimogêneo com um valor quase três vezes superior à média do mercado, desviando o equivalente a R$ 28 milhões.

O pedido foi efetuado em junho, junto ao ministério de Defesa, comandado por Fernando López, que também é investigado. A empresa Bravo Tacticals Solutions, com sede em Miami, nos Estados Unidos, foi contratada no lugar da brasileira Condor e vendia os cartuchos de munição não letal por 270 pesos bolivianos, quando o mesmo produto era oferecido pela contratada anterior a 116 pesos bolivianos – o equivalente a R$ 90.

A Bravo Solutions pertence a um empresário boliviano de La Paz que havia declarado falência em novembro de 2019 e atua irregularmente no setor. 

Murillo se negou a comparecer aos tribunais para prestar depoimento, por isso foi destituído, no dia 21 de outubro, depois de uma moção de censura aprovada pela Assembleia Legislativa Plurinacional.

O procurador de La Paz emitiu um alerta imigratório contra Murillo e López, na última quinta-feira (5), para impedir que os dois deixem o país.

O processo penal permanece aberto sob as acusações de uso indevido de influências, negociações incompatíveis com o exercício das funções, contratos lesivos ao Estado e incumprimento de deveres. 

Também em outubro, o ex-ministro de Governo foi acusado de abuso de poder ao destituir, supostamente de maneira arbitrária, o diretor da Unidade de Investigações Financeiras, Ramiro Rivas.

Rivas acusou Murillo de acobertar casos de corrupção na pasta e pressionar a Unidade de Investigações Financeiras (UIF) a investigar pessoas vinculadas ao MAS, como o atual presidente e ex-ministro de Economia Luis Arce. 

Meios de comunicação bolivianos apontam que Murillo fugiu para o Panamá, passando pelo Brasil. No entanto, até o momento, autoridades do país não confirmaram a fuga. Tanto Murillo quanto López não compareceram ao pronunciamento final de Áñez com seu gabinete.

Branko Marinkovic 

Na última semana, a Fundação Terra divulgou um comunicado denunciando a interferência do ex-ministro de Economia e Finanças, Branko Marinkovic, para garantir a concessão de terras a seu favor no estado de Santa Cruz, que faz fronteira com o Brasil.

Segundo a organização não governamental, 33,4 mil hectares foram concedidos pelo Instituto Nacional de Reforma Agrária (INRA) à família Marinkovic no estado.

A decisão do INRA tem como favorecidos duas propriedades agrárias: 12,4 mil hectares para a Empresa Agropecuária Laguna Corazón, na região de Guarayos, e outros 21 mil hectares para a Empresa Tierras Bajas del Este, em Chiquitos.

A Laguna Corazón situa-se em um território indígena guarayo. Em 2005, os moradores já haviam acusado a empresa dos Marinkovic de impedir o acesso a fontes de água.

O caso chegou ao Tribunal Agrário Nacional, que deu veredito favorável aos povos originários, devolvendo 12 mil hectares de terra que não tinham documentação comprovada pela família. A mesma porção de terra, durante o governo Áñez, foi entregue novamente à propriedade privada.

"Este caso tem uma dupla conotação, porque são propriedades com vício de nulidade, que superam o limite máximo de 5 mil hectares estabelecido pelo artigo 398 da Constituição", ressalta a Fundação Terra no documento. 

A lei de Recondução Comunitária da Reforma Agrária, aprovada em 2006 pelo ex-presidente Evo Morales, proíbe a existência de propriedades maiores que 5 mil hectares que não cumpram com a função social da terra. 

A Fundação ainda acusa a gestão de Áñez de atuar em benefício do agronegócio e de tráfico de terras, por meio de concessões com informações ocultas pelo INRA

A família Marinkovic nega a acusação e afirma que a Fundação Terra tenta "ganhar favores políticos do MAS com uma falsa denúncia."


Multidão acompanhou a cerimônia de posse de Luis Arce no último domingo, na capital La Paz / JORGE BERNAL / AFP

Branko Marinkovic é boliviano de origem croata, foi presidente do Comitê Cívico de Santa Cruz em 2007 e é um dos líderes da oposição na região. Entre as ideias defendidas pelo bloco, estão, por exemplo, a separação da região que compreende os estados de Santa Cruz, Beni, Pando, Tarija e Chuquisaca, com forte presença do agronegócio e maior população branca em relação ao altiplano, majoritariamente indígena, mineiro e cocaleiro.

Em 2009, o Comitê realizou atos violentos e tentou tomar a sede do INRA no estado de Pando, como parte do plano separatista.  

Marinkovic foi acusado de terrorismo e abandonou o país para evitar o processo judicial, retornando em janeiro de 2020 para comandar o ministério de Planejamento da gestão de Áñez. Em setembro, após a renúncia de Oscar Ortiz, ele assumiu o ministério de Economia e Finanças. 

Luis Fernando López

Além da compra de gás lacrimogêneo com preço superior à média do mercado, investigada pelo Ministério Público de La Paz, o ex-ministro da Defesa também responderá por abuso de poder e perseguição política nos massacres de Senkata e Sacaba.

O ex-oficial do exército assumiu o cargo afirmando "não ser político, mas um cidadão interessado em usar sua experiência para ajudar a reconstruir o país". Depois de deixar a vida militar e antes de assumir o Ministério de Economia e Finanças, López foi gerente de transnacionais como Lowe e Mcann Erickson, trabalhando com marcas como Coca-Cola, BMW, Unilever, Huawei, Cinemark e Copa Airlines.

Edição: Leandro Melito