A Argentina foi condenada por racismo pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em uma sentença que atribui ao Estado a responsabilidade pelo assassinato do ativista afrouruguaio José Delfín Acosta Martínez, em 5 de abril de 1996, pela polícia da cidade de Buenos Aires.
A conclusão foi publicada no dia 31 de agosto em um reconhecimento internacional e histórico, em um país com profundas questões de invisibilização do racismo e da presença de negros e afrodescendentes no país. A sentença só veio à público em outubro e foi impulsionada pela própria família Acosta Martínez.
Apesar da importância do reconhecimento internacional, tanto o caso como a sentença da Corte Interamericana foram pouco divulgados no país. A questão racial é pouco discutida na Argentina, que costuma sustentar o discurso de que não há negros no país, apoiando-se, principalmente, em causas de guerra ou de doenças que justificaria a inexistência de afro-argentinos.
A Corte determina o prazo de um ano para a Argentina publicar a íntegra da sentença no boletim oficial do país.
24 anos em busca de justiça
O caso foi fechado duas vezes, com a constatação de uma autópsia realizada na Argentina e as versões policiais contraditórias: a primeira que dizia que José teve um ataque epiléptico (apesar de não ter epilepsia) e a segunda, que ele mesmo tirou sua roupa e se golpeou até provocar sua própria morte.
Apenas após conseguir transferir o corpo, as autópsias realizadas no Uruguai comprovaram a causa de morte pelos golpes sofridos. Nessa instância, também foi possível revisar a conclusão dos exames argentinos: a quantidade de drogas que, a princípio, estava registrada no corpo de José era proporcional a um estado de coma.
"Estão todos comprados, o juiz, o promotor. Todos corruptos", afirma o irmão de José, Ángel Acosta, Além de esgotar as instâncias legais possíveis na Argentina, ele denuncia que recebeu uma série de ameaças e chegou a sofrer atentados.
"Me atropelaram várias vezes", conta. Em 2004, um atropelamento provocou fraturas graves e o levou a pedir asilo político na Espanha.
Me parabenizam pela sentença da Corte IDH. Mas a verdade é que ainda não se fez justiça
Acompanhamento
O Instituto Nacional Contra a Discriminação, a Xenofobia e o Racismo (Inadi), é um dos órgãos do estado que devem acompanhar casos como o de José, na Argentina.
Entretanto, Emiliano Montini, diretor de assuntos jurídicos do Instituto, reforça que o órgão não possui um grande repertório de acompanhamento judicial dos casos que recebe.
"Apenas recentemente nos envolvemos diretamente em um caso, que foi o travesticídio de Diana Sacayán. Fomos acusadores no processo", conta.
"Com essa gestão, estamos buscando estar mais ativos e instalar o debate sobre o racismo estrutural no país", ressalta.
Saiba mais: Justiça argentina retira agravante de travesticídio no caso da ativista Diana Sacayán
O Inadi registrou, entre 2008 e 2019, 26.975 casos e denúncias de racismo na Argentina. Segundo o relatório divulgado pelo Instituto, quase um terço das denúncias se referem a discriminação contra pessoas migrantes latino-americanas seguidas do aspecto físico, a condição econômica e a cor da pele.
Entenda o caso
O caso ocorreu na saída de uma boate portenha, Maluco Beleza, frequentada, especialmente, pela comunidade afro na cidade de Buenos Aires.
Conforme registrado em diversas declarações de testemunhas e na descrição do caso na corte internacional, após um corte de luz, os presentes saíram à rua, já amanhecendo.
Uma viatura da polícia federal chegou ao local devido a uma denúncia anônima sobre uma suposta pessoa armada que estaria provocando distúrbios no local, segundo a declaração do chefe da delegacia nº 5.
Um afro-brasileiro foi abordado pelos policiais, e seu irmão foi tentar defendê-lo. Os policiais prenderam os dois, e, ao perceber a abordagem violenta e arbitrária apenas a pessoas negras presentes no local, José Acosta Martínez interviu.
Da mesma maneira que os dois afro-brasileiros, José foi detido arbitrariamente, e levado à delegacia, onde faleceu por uma convulsão provocada por chutes e pauladas provocados pelos oficiais. "Os policiais não suportaram que meu irmão exigisse seus direitos", afirma
Um caso emblemático
José e Ángel migraram do Uruguai pelas constantes repressões policiais contra as reuniões de candombe – uma expressão cultural afro mantida como patrimônio pelos Acosta Martínez.
"Somos descendentes de uma das famílias africanas mais antigas do Uruguai, que preserva o candombe como forma de vida. Levamos essa influência a todos os lugares", conta Ángel.
Assim que chegaram à Argentina, fundaram o Grupo Cultural Afro, para difundir as influências africanistas na cidade de Buenos Aires. Davam aulas de candombe e faziam intervenções culturais em espaços consagrados na cidade.
Também fizeram parte de um grupo que alcançou a descriminalização de religiões de matriz africanas no país. "Não havia movimento de ativismo afrodescendente quando chegamos. Já não havia prática de candombe nas vias públicas, herança do racismo", pontua Ángel.
A ativista afro-uruguaia Sandra Chagas também integrou o Grupo Cultural Afro, e era amiga de José. Veio também jovem à Argentina, onde mora até hoje. Ela ressalta como o racismo é naturalizado no país.
"A Argentina conserva uma perspectiva europeísta de estado-nação. Os afro-argentinos foram invisibilizados e negados historicamente: primeiro, deixaram de ser registrados e, depois, houve todo o processo de embranquecimento, a partir da percepção de que não existe comunidade negra na Argentina", conta Chagas.
"Uma das pessoas mais comprometidas e que mais sabia de direitos entre nós era José. Assim, ele foi defender os dois afrobrasileiros", relembra.
O racismo na Argentina
O racismo estrutural na Argentina invisibiliza a presença histórica da população negra e afrodescendente no país.
Em 1996, mesmo ano do assassinato de José Acosta, ficou conhecida a frase do então presidente Carlos Ménem, afirmando que "na Argentina não existem negros, isso é problema do Brasil".
Atualmente, a comunidade senegalesa que habita a cidade de Buenos Aires sofre com essa característica da sociedade argentina.
Além da dificuldade de conseguir documentos e assistência, os senegaleses constantemente são alvo de repressão policial ao tentar trabalhar como vendedores ambulantes – maior fonte de renda desta população na cidade.
Uma parte notável da naturalização do racismo e da negação no país é expressa no vocabulário argentino.
O uso pejorativo da palavra "negro" no país é uma forma de adjetivar negativamente a algo e, principalmente, alguém, independente da cor de pele da pessoa. As origens racistas do termo são normalmente negadas, postura observada em distintos grupos sociais no país.
"Infelizmente, o caso de José não é um fato isolado", comenta Emiliano Montini, do Inadi. "O racismo está muito arraigado no nosso país, e em práticas que são consideradas engraçadas, como parte da cultura", aponta.
A sentença da Corte Interamericana sobre o caso de José inclui o pedido da construção de um monumento de José no Parque Lezama, em San Telmo, onde se fazia a quarentena dos escravizados africanos levados à Argentina.
Também estipula a instalação de câmeras de filmagem em todas as delegacias da cidade e a capacitação da polícia em discriminação racial.
O Brasil de Fato procurou o Ministério de Segurança argentino para comentar a sentença, mas até o fechamento da reportagem não obteve retorno.
Edição: Marina Duarte de Souza