Direitos Humanos

Embaixadora argentina veterana se posiciona em defesa da soberania latino-americana

Para Alicia Castro, renunciar ao voto de seu governo contra a Venezuela em Conselho da ONU não foi uma decisão difícil

Tradução: Ítalo Piva

Peoples Dispatch* |
Alicia Castro não concordou com a postura do governo argentino sobre a Venezuela na ONU e renunciou à sua indicação como embaixadora na Rússia - Télam

A diplomata argentina Alicia Castro não é tímida no que diz respeito a seus posicionamentos. Ela veio à diplomacia oriunda do movimento sindical, quando foi liderança durante seu tempo como aeromoça nas Aerolíneas Argentinas. Castro também foi integrante do Congresso Nacional Argentino, onde lutou pelos direitos da classe trabalhadora. Os cargos de embaixadora no Reino Unido e na Venezuela, culminaram, neste ano, com a nomeação para a mesma posição na Rússia. 

Enquanto aguardava iniciar seu novo posto, Castro ficou enfurecida quando o governo argentino votou contra a Venezuela no Conselho de Direitos Humanos da ONU, no último dia 6 de outubro. Ela renunciou e tornou pública sua carta de demissão. "Hoje, apresento minha renúncia como embaixadora, pois discordo da política externa atual", escreveu Castro. 

Uma semana após sua renúncia, a reportagem do Globetrotter conversou com Castro. Ela indicou que não foi uma decisão difícil. Pelo contrário, ela disse que teria sido incapaz de servir ao governo de seu país sem concordar com sua orientação política sobre a soberania da Argentina e da América Latina, ou a "Pátria Grande", como um todo. 

A corrupção dos "direitos humanos"

Em julho de 2019, Michelle Bachelet, a alta comissária de Direitos Humanos da ONU e ex-presidente do Chile, publicou um relatório sobre supostas violações de direitos humanos na Venezuela. O relatório contém grandes omissões. Por exemplo, ele minimiza o impacto das sanções estadunidenses, até mesmo ignorando o fato de que essas sanções unilaterais foram impostas em 2008 e não 2017; o documento também esquece de mencionar as várias instâncias em que a oposição instigou a violência, como ocorreu em 2014, 2017 e 2019. 

Para implementar sua agenda política, Bachelet anunciou, em 2019, um acordo com o governo venezuelano, abrindo observatórios de direitos humanos no país para apurar denúncias de violações. Era evidente que o assunto de “direitos humanos” não estava sendo tratado de uma maneira forense e judicial; tinha virado uma ferramenta política dos Estados Unidos e seus aliados, como parte de sua campanha de desinformação contra o governo de Nicolás Maduro. 

Em setembro de 2020, Michelle Bachelet foi diante do Conselho de Direitos Humanos da ONU oferecer sua perspectiva sobre violações de direitos dentro da Venezuela. Isso veio à tona durante o período no qual a Assembleia Nacional do país se prepara para as eleições legislativas de 6 de dezembro. Os EUA já deixaram claro que gostariam de interferir no processo eleitoral e fomentar a desestabilização política da Venezuela. 

Outro instrumento dessa interferência é o Grupo de Lima, criado em 2017 pelo Canadá e alguns países latino-americanos; uma cortina de fumaça para a estratégia estadunidense de mudança de governo na Venezuela. Em setembro de 2019, o Grupo de Lima e os Estados Unidos pressionaram o Conselho de Direitos Humanos da ONU para criar uma Missão Independente de Apuração de Fatos no país; essa missão nunca foi independente, já que recebeu sua verba de US$ 5 milhões, em grande parte de países do Grupo de Lima. O relatório final continha informações não verificadas, na maioria vindas de contas de redes sociais localizadas fora da Venezuela. 

Sob o governo argentino anterior, do direitista Mauricio Macri, a Argentina foi uma parte integral do Grupo de Lima. Durante sua campanha bem-sucedida à Presidência em 2019, o atual presidente, o peronista Alberto Fernández, disse que nomearia Felipe Solá ao Ministério das Relações Exteriores; que, por sua vez, anunciou que a Argentina não deixaria o Grupo de Lima, embora o mesmo havia sido criado somente para derrubar o governo venezuelano. No dia 6 de outubro de 2020, a Argentina votou com o Grupo de Lima a favor da Resolução L.43, estendendo o mandato da Missão de Apuração de Fatos. Foi esse voto que fez Alicia Castro bater com o pé. 

A erosão da soberania

“O que está em jogo aqui”, Castro disse, “são duas coisas seríssimas”. Primeiramente, o ataque generalizado contra instituições democráticas por toda a América Latina. Conversávamos poucos dias antes da eleição na Bolívia, em que o Movimento ao Socialismo (MAS) venceu e reverteu o golpe de Estado que o havia removido em novembro de 2019.

Pelo continente inteiro, observamos outros tipos de golpe, através do lawfare (uso de instrumentos jurídicos para fins políticos) e das guerras híbridas, ambos sendo utilizados contra forças políticas de esquerda. Assassinatos diários e intimidação de líderes de esquerda na Colômbia, aparentemente, não despertaram nenhuma indignação dos governos de Brasil e Peru; eles focam suas atenções – graças a lupa fornecida por Washington D.C. - inteiramente na Venezuela. 

Governos que se interessam em reduzir “o abismo nojento entre ricos e pobres”, são ameaçados com remoção, disse Castro. Foi isso que Lula (Brasil), Evo Morales (Bolívia), Rafael Correa (Equador) e Cristina Fernández de Kirchner (agora vice-presidenta da Argentina) tiveram que aguentar. “A mídia comercial e as redes sociais, em conjunto com seus exércitos de trolls e robôs, exercem um papel central na demonização de líderes populares e na desestabilização da democracia”, explicou Castro. 

A segunda preocupação é que o Grupo de Lima é guiado pela agenda norte-americana e europeia. Em sua carta de renúncia, Alicia Castro fez referência à Doutrina Drago. Em 1902, o Ministro das Relações Exteriores da Argentina, Luis María Drago, se posicionou contra a tentativa de Reino Unido, Alemanha e Itália de impor um bloqueio naval contra a Venezuela, numa tentativa de recuperar seus investimentos; Drago afirmou que a intervenção armada jamais deveria ser permitida para a cobrança de dívidas públicas, e que a soberania latino-americana deveria ser defendida.  

“É particularmente doloroso o fato que a Argentina votou com o Reino Unido contra a Venezuela”, disse Castro, dado o conflito pelas Ilhas Malvinas, que ocorre entre os dois países. Em 2012, enquanto embaixadora argentina no Reino Unido, Castro questionou o então ministro das Relações Exteriores Britânico, William Hague, sobre a ausência de diálogo por parte de Londres em relação às ilhas disputadas. 

A Argentina tomar partido com a Grã-Bretanha, e cuspir em cima da Doutrina Drago, pareceu uma violação total de tudo que caracterizava sua política externa independente.

Porém, pior ainda, é a indicação de que o governo argentino agiu assim na ONU apenas para agradar os ricos donos de notas do tesouro argentino, que estavam num processo de negociações sobre um possível não-pagamento. Pode muito bem ser coincidência o fato de que a equipe de avaliação do Fundo Monetário Internacional (Julie Kozack e Luis Cubeddu) chegou em Buenos Aires no mesmo dia em que a votação na ONU ocorria. Refinanciar a dívida de US$ 44 bilhões é a pauta principal do governo argentino, que não tem a menor vontade de estragar suas relações com o Departamento do Tesouro norte-americano, já que discussões sobre a tabela de pagamentos estão em andamento. 

Ética

Magoados pela renúncia de Castro, o governo argentino disse que o país “não se submete” aos princípios gerais do Grupo de Lima. Isso é uma boa notícia, mas não explica o voto na ONU dia 6 de outubro. 

“O anticolonialismo é um imperativo ético”, Castro escreveu em sua carta de demissão. É uma frase poderosa. Ela ter renunciado de maneira tão pública, foi um ato de imensa bravura. Sua renúncia deixou claro, para muitos, a importância de manter a cabeça erguida, num mundo em que gente demais se rebaixa perante a arrogância dos poderosos. 

*Vijay Prashad é um historiador, jornalista e editor indiano. Ele escreve e é o editor-chefe da Globetrotter, um projeto do Instituto Independente de Mídia. Ele é editor-chefe da LeftWord Books e diretor do Instituto Tricontinental de Pesquisa Social. Ele também é docente sênior não residente do Instituto Chongyang de Estudos Financeiros, na Universidade de Renmin, na China, e já escreveu mais de 20 livros incluindo seu livro mais recente, Balas de Washington, com introdução de Evo Morales Ayma.

**Artigo publicado no Peoples Dispatch.

Edição: Peoples Dispatch