CRIME DE ÓDIO

Justiça argentina retira agravante de travesticídio no caso da ativista Diana Sacayán

Sentença inicial contra o assassino da travesti em Buenos Aires era considerada um marco histórico

Brasil de Fato | Buenos Aires (Argentina) |

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Diana Sacayán impulsionou o projeto de lei para cota trans de vagas de trabalho. Seu assassinato ocorreu apenas um mês após a sanção, em 2015. - Reprodução

No mesmo mês que se completa cinco anos do assassinato da militante travesti Diana Sacayán, a Justiça argentina decidiu desconsiderar a figura de travesticídio do caso. A caracterização do crime na condenação havia sido uma sentença histórica na Argentina, por ter sido a primeira a reconhecer o agravante de ódio à identidade de gênero.

A decisão do julgamento de Gabriel David Marino, proferida no 4º Tribunal Penal Oral, em Buenos Aires, condenou-o à prisão perpétua por delito de homicídio qualificado por ódio à identidade de gênero e por violência de gênero. Na revisão da sentença, a Câmara Nacional de Cassação alegou falta de provas por ódio à identidade de gênero, considerando o crime apenas como feminicídio. A sentença mantém a condenação com prisão perpétua do acusado.

Esta semana, dois recursos extraordinários foram apresentados à Corte Suprema para recorrer à decisão, por parte da acusação e do Ministério Público. Este último reforça a importância de qualificar um crime de ódio ou preconceito. "Não nos enfrentamos à conduta individual de um sujeito transfóbico ou transodiante, senão a uma estrutura social complexa que coloca às travestis em uma posição de particular vulnerabilidade diante da violência letal", argumentaram representantes do Ministério.

A advogada Luciana Sánchez, representante do ativista e irmão de Diana, Say Sacayán, avalia que será um processo difícil. "Como está confirmada a condenação perpétua, há mais possibilidade que recusem esse recurso. A discussão agora é, justamente, sobre o punitivismo: se dá no mesmo, já que, de qualquer forma, ele está condenado à prisão perpétua, ou se será possível apresentar outras questões a respeito da pena", pontua.

"Devemos pensar essa disputa como uma projeção para o futuro. É duríssimo, porque os tempos da Justiça não são os tempos do coletivo travesti e trans."

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Atraso na justiça contra travesticídios

Em 2019, o Observatório Nacional de Crimes de Ódio LGBT relevou 177 mortes na Argentina ocasionadas por ódio à orientação sexual, identidade e/ou expressão de gênero, sendo que 64% das vítimas eram mulheres trans (travestis, transexuais e transgênero) e 6% de homens trans.

A Justiça ainda não reconhece os direitos da população trans – em muitos casos, sequer respeita a identidade de gênero –, por isso há poucos dados oficiais que demonstrem, em cifras precisas, a violência contra a comunidade.

Após o crime, o ativista e irmão de Diana, Say Sacayán, criou a Comissão Justiça por Diana e, por mais de dois anos, construíram a comprovação da hipótese de travesticídio.

"A decisão de Cassação apaga a identidade travesti de Diana", afirma, destacando que a defesa de Marino se baseia no fato de que ele "dava demonstrações públicas de afeto por Diana", com carícias e beijos na boca. "Por 'demonstrar afeto', não consideram que ele poderia ser transfóbico. Essa é a diferença entre uma mulher cis e uma travesti. Tivemos horas de discussões profundas na comissão sobre as relações de homens cis com travestis", afirma.

A sentença [por travesticídio] vinha reparar essa violência histórica

Paradigma judicial

As leis que amparam a justificativa do agravante de travesticídio são dois avanços legislativos importantes na Argentina. A Lei nº 26.743 de identidade de gênero, com a qual muitas pessoas, entre elas Diana Sacayán, puderam ter um novo documento correspondente às suas identidades. E a modificação no Código Penal através da lei nº 26.791 inciso 4, que incorpora como agravante dos homicídios o ódio à orientação sexual, à identidade de gênero e à sua expressão. Ambas sancionadas em 2012.

"Foi uma revolução na comunidade jurídica, porque o inciso quatro nunca tinha sido aplicado. Os advogados diziam que a transfobia não estava criminalizada. Então, apontávamos o inciso quatro, no Código Penal", afirma Sánchez, destacando que o Ministério Público, ao investigar o crime, não contou com nenhum protocolo de atuação para distinguir e saber processar esses motivos discriminatórios.

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"A decisão da Cassação expressa exatamente esse desconhecimento. Também é preciso entender que, para os operadores judiciais, esse tipo de reconhecimento tem custos. A Câmara de Cassação não quis pagar, preferiu ser repudiada pelas vítimas que por seus colegas e superiores", conclui a advogada.

As leis estão. O que está demonstrado é que não querem aplicá-la.

Para Sánchez a estigmatização da Justiça sobre a população travesti e trans é histórica, assim como o tratamento nos meios de comunicação, que constrói um imaginário negativo e distante da realidade concreta. Na Argentina, a média de vida desse grupo social é de 35 a 40 anos, reforçado pela impunidade dos crimes cometidos contra a comunidade.

São inúmeros os relatos de violência por parte da polícia, causas armadas e prisões arbitrárias. "Muitas companheiras tiveram receio de ingressar ao tribunal no julgamento do caso de Diana. Isso é muito significativo. Representa como a justiça vem tratando as pessoas travestis e trans", conta Say.

Cota trans e o legado de Diana

Diana Sacayán impulsionou a primeira lei mundial de cota trans para vagas de emprego, sancionada um mês antes de seu assassinato. Após anos de espera, no início de setembro deste ano, a conquista se tornou um decreto. O governo argentino estabeleceu que 1% das vagas de trabalho no setor público devem ser destinada às pessoas travestis, transgênero e transexuais.

Nancy Sena é coordenadora municipal de Diversidade da cidade de Moreno, na província de Buenos Aires, e forma parte da Frente Federal que une militantes de todo o país para somar forças pela cota de trabalho trans, e ressalta que é a primeira vez que o Estado se faz responsável pelo que se chama travesticídio e transfemicídio social –  a exclusão sistemática dessa população.

"O Estado tinha que ser o primeiro a dar uma resposta, porque o Estado é responsável", diz Sena. "Desde pequenas nos expulsam de nossas casas. Não temos acesso a estudos, à saúde, à moradia, à família, ao amor, a nada do que muitas pessoas heterossexuais podem acessar. Antes, era impensável que uma mulher como eu estivesse ocupando um cargo público."

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O projeto de lei, apesar de sancionado em 2015, ficou congelado durante quase todo o mandato do governo de Mauricio Macri. Agora com caráter nacional, a Lei de Cotas Trans soma mais um passo para o reconhecimento da violência e exclusão estrutural às identidades. E, nesse sentido, a sentença por travesticídio seria um caso de reparação histórica, um primeiro passo no âmbito jurídico para reconhecer as violências sofridas pela população travesti, transexual e transgênero.

"O que não se nomeia, não existe", reforça Sena. "Os governadores, legisladores e deputados, ao invés de governar com a Bíblia, deveriam começar a legislar com a Constituição. Assim, vamos à verdadeira inclusão em todo o mundo."

Entenda o caso

No dia 13 de outubro de 2015, o corpo de Diana Sacayán foi encontrado em seu próprio apartamento em Buenos Aires. De acordo com as investigações, ela tinha os pés e mãos amarrados e foram contabilizadas 27 lesões em seu corpo, das quais 13 foram consideradas facadas, apresentando "sinais de ter sido vítima de uma ação cometida com alto grau de violência", segundo a sentença. Na cena, também foram encontrados uma tesoura e um martelo.

Gabriel David Marino era parceiro de Diana. Além de digitais correspondentes a Marino encontradas no apartamento, o material genético nas unhas de Diana foram identificadas como sendo dele. A perícia avalia que havia pelo menos mais uma pessoa no momento do crime. As autoridade oferecem uma recompensa de AR$500 mil para buscar informações sobre o coautor do crime ainda não identificado.

Em 2018, o acusado foi condenado à prisão perpétua como coautor do assassinato de Diana Sacayán, por crime de ódio à identidade de gênero e por violência de gênero. A sentença foi notícia mundial, dado o ineditismo do reconhecimento de crimes de ódio à comunidade travesti, transexual e transgênero.

Edição: Marina Duarte de Souza