A vitória eleitoral do Movimento ao Socialismo (MAS) na Bolívia, confirmada no início da semana, representa um giro de 180 graus na política do país. Onze meses após o golpe, Luis Arce e o vice David Choquehuanca obtiveram 25 pontos de vantagem sobre os adversários no primeiro turno.
O presidente eleito deixa claro que não se vê como líder da esquerda latino-americana. “Meu foco é resolver os problemas deste país”, ressaltou em um dos primeiros pronunciamentos após a eleição. Mesmo assim, sua chegada à Casa Grande del Pueblo, sede do governo boliviano, tem repercussões em todo o continente.
Para Igor Fuser, doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP) e professor de Relações Internacionais na Universidade Federal do ABC (UFABC), o triunfo do MAS significa, em primeiro lugar, uma derrota expressiva da Organização dos Estados Americanos (OEA), que atua há anos "como instrumento dos Estados Unidos". A entidade, liderada pelo secretário geral Luis Almagro, foi protagonista do golpe de 2019 ao apontar indícios de uma fraude eleitoral que nunca se comprovou.
O professor avalia que a resposta eleitoral dos bolivianos contém uma mensagem a todos que pretendem ter ingerência sobre os países da América Latina.
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“O resultado da eleição na Bolívia mostra que é possível derrotar as forças conservadoras, da direita latino-americana, a serviço dos EUA”, afirma. “E demonstra que o ‘giro à direita’ da América Latina tem caráter circunstancial e não é uma tendência sólida, irreversível. Isso já tinha ficado claro com a vitória de Alberto Fernández, na Argentina, e agora se confirma”, completa Fuser, que também cita as mobilizações sociais na Colômbia, no Equador e no Chile.
“O que está em jogo são as mesmas propostas que levaram à eleição do Evo Morales: soberania nacional, inclusão social, diminuição da desigualdade e retomada do desenvolvimento econômico a partir do protagonismo do Estado”, acrescenta. “São os pilares dos governos progressistas na América Latina, que continuam muito vivos.”
Inspiração
Bia Lopes, secretária executiva da Organização Continental Latino-Americana e Caribenha de Estudantes (Oclae) e mestranda em Educação, História Política e Sociedade, enfatiza em entrevista ao Brasil de Fato que a eleição do MAS não diz respeito apenas à Bolívia.
“Foi uma alegria e um alívio para todos que se dedicam à articulação do povo latino-americano em prol da soberania, da liberdade, da justiça social, tão necessárias a um continente marcado violência, desigualdade e ingerências”, enaltece. “Estamos falando de uma consciência popular que se sobrepôs ao golpismo.”
“Foi uma vitória contra o imperialismo, o racismo e o colonialismo. Uma vitória de todos nós, de alguma maneira”, acrescenta Lopes. “Para nós, aqui no Brasil, essa vitória nos enche de força e coragem. O povo boliviano deve servir de inspiração permanente.”
A secretária executiva da Oclae afirma que o retorno do MAS ao governo se insere em um contexto de resistência ao neoliberalismo e ao autoritarismo em vários países do continente. Ela cita como exemplo a vitória da esquerda nas eleições em Montevideo, capital do Uruguai, e a organização popular para elaboração de uma nova Constituição no Chile.
“Espero que esse acontecimento também traga uma reflexão sobre o que ocorre em países como Cuba e Venezuela, que vivem um longo processo de sufocamento pelos Estados Unidos e enfrentam políticas de bloqueio econômico e midiático”, completa.
Limites
O Brasil foi o primeiro a saudar o governo interino da presidenta autodeclarada Jeanine Áñez, em 2019, e o único vizinho da Bolívia que não cumprimentou Arce pela vitória.
“Entre todos os governos de direita da América Latina, o governo Bolsonaro – cujo governo está intimamente ligado ao golpe boliviano – se destaca como o mais servil e subserviente, o que se submete de maneira mais completa, humilhante e vergonhosa aos interesses dos EUA, e particularmente ao governo de extrema direita de Donald Trump”, critica Fuser.
O professor da UFABC concorda que a vitória de Arce “mantém viva na agenda latino-americana o horizonte de uma verdadeira integração regional”. Por outro lado, lembra que as relações exteriores da Bolívia, mesmo durante o governo Morales, não se caracterizavam pelo rompimento com países governados por presidentes de direita, alinhados aos EUA.
Ou seja, embora tenha avançado na nacionalização dos recursos minerais, o ex-presidente boliviano também compareceu à posse de Jair Bolsonaro e colaborou com o governo brasileiro para a prisão do italiano Cesar Battisti.
Um dos países mais pobres da América do Sul, a Bolívia depende da exportação de commodities agrícolas e minerais e não tem saída para o mar. “Um país com essas características não pode se dar ao luxo de não ser pragmático”, pondera Fuser. “Essa cautela e prudência não impede o país de assumir posições firmes no cenário internacional. Antes mesmo da posse, por exemplo, Arce já se somou aos presidentes do México e da Argentina para exigir a saída de Almagro da OEA.”
O presidente eleito da Bolívia reforçou, em pronunciamento na última quarta-feira (21), que o objetivo dos primeiros meses de governo será diversificar a economia e retomar o projeto de industrialização do lítio.
Edição: Rodrigo Chagas