COVID-19

Com um dos maiores isolamentos do mundo, Argentina é alvo dos "antiquarentena"

Presidente diz que o país está "submetido a ataques que fazem parecer que os cuidados não são necessários"

Brasil de Fato | Buenos Aires (Argentina) |

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Manifestações anti-quarentena têm gerado grandes aglomerações contra o governo e reivindicando "liberdade" - Juan Mabromata / AFP

A manutenção do isolamento social na Argentina, sete meses após sua implementação, tem gerado questionamentos sobre sua eficiência. Também tem sido constantemente atacada pelo movimento antiquarentena.

Nos primeiros meses, o país apresentava os índices mais baixos de evolução de contágio na região. Agora, e até o fechamento desta reportagem, ocupa a 6º posição no ranking mundial de contágios por covid-19, com 917 mil casos acumulados, segundo a Organização Mundial da Saúde. Como interpretar essa mudança de cenário?

Atualmente, Buenos Aires já tem seus comércios reabertos, e o fluxo de pessoas nas ruas da capital federal é notável. Uma queda semanal de 40% foi registrada nos índices de contágio na província, desde agosto. "Para isso serviu esse tempo de quarentena que tivemos. Isso fez com que nunca superássemos 71% de ocupação [nos hospitais]", declarou o governador da província de Buenos Aires Axel Kicillof, em entrevista à Télam.

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Os altos índices de contágio agora apontam para as províncias do interior do país. O próprio presidente Alberto Fernández afirmou, no último anúncio de extensão da quarentena até 25 de outubro, que o contato com a capital levou o vírus a zonas que antes apresentavam poucos casos de covid-19. "Outras províncias vieram buscar mantimentos, alimentos, necessidades de cada província mais pobre, e o vírus começou a circular localmente, praticamente em todo o país", explicou ao apontar um gráfico que mostrava um aumento acelerado às províncias nos últimos meses.


Gráfico apresenta a evolução de casos confirmados de covid-19 em todo o território argentino / Reprodução

A trajetória da quarentena argentina

"Falar em uma das 'maiores quarentenas do mundo' exige especificar bem a que nos estamos referindo", aponta o infectologista Martín Hojman, do Hospital Rivadavia. "Na Argentina, como em todos os países, a situação é muito variável de acordo com a regionalidade. Há muitas atividades permitidas, segundo cada província. A utilização da pandemia politicamente foi brutal no país, identificando os que querem manter as medidas de isolamento com o governo e os que não com a oposição", completa.

A Argentina foi um dos primeiros países a se adiantar com a chegada da pandemia no território. Nesse momento, sabia-se pouco sobre o comportamento e propagação do vírus, portanto, ao contabilizar três mortos e 128 casos confirmados, o presidente Alberto Fernández declarou o isolamento social preventivo e obrigatório para conter os contágios do coronavírus.

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Desde o dia 19 de março até então, o cenário mudou radicalmente. Do reconhecimento internacional pela medida e alta popularidade do presidente, a pressão da oposição contra o governo aumentou – não só em relação a quarentena, mas com esta questão sempre presente – , assim como a do setor econômico.

No período mais recente, as manifestações antiquarentena são cada vez mais frequentes e o que se tem chamado de "cansaço social" tem levado a população a sair de casa para além das atividades permitidas.

Um gráfico comparativo de número de mortes por covid-19 tem circulado nas redes sociais para apontar o caso da Argentina como um suposto fracasso. Porém, ele revela a mudança de comportamento da população no país, que correspondeu a um aumento de circulação das pessoas e, em consequência, do vírus.


Gráfico difundido nas redes sociais aponta aumento de casos de morte por milhão de habitantes / Our World in Data

Em resposta às pressões sociais e do setor econômico, o governo anunciou no dia 17 de julho um plano de reabertura gradual, adaptado em fases distintas de acordo ao nível de contágios de cada província. A partir deste mês se observa também a curva de mortes tem uma elevação mais acentuada.

Vale ressaltar que o pico, registrado no dia 3 de outubro, corresponde a uma atualização de mais de 3 mil óbitos por covid-19, na província de Buenos Aires, que ainda não constavam no registro oficial de mortes por atrasos do setor privado.

"Uma certa flexibilização provocou um novo surto de contágio", avalia o analista político argentino Jorge Falcone. "A isso devemos somar a oposição, muito radicalizada, que confronta a quarentena como se se tratasse de uma política autoritária, arbitrariamente adotada."

Segundo Falcone, uma crítica mais honesta se dirigiria a medidas que o governo não tomou, como a redistribuição de riquezas para conter o momento crítico da população.

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"A conjuntura mostra um governo que se vê obrigado a flexibilizar a quarentena, evidenciando não ter muitas cartas para jogar com a cidadania que esgrimir uma suposta ética do cuidado", afirma. "Sem dúvida, adotar uma política de isolamento preventivo foi, globalmente, um critério correto. Mas não complementar com medidas econômicas de redistribuição de renda está começando a mostrar as polarizações das suas consequências recessivas."

Sistema de saúde

O Ministério da Saúde na Argentina foi retomado com o atual governo, uma vez que o ex-presidente Mauricio Macri desmontou a pasta, assim como cortou em 25% o orçamento destinado à saúde. Com a mudança de governo e a pandemia chegando a apenas três meses depois de Fernández assumir, o isolamento social foi fundamental para inaugurar novos hospitais e adaptar o sistema de saúde para o que estava por vir, como explica Martín Hojman.

"O objetivo dessas medidas sanitárias é fazer com que o sistema de saúde não colapse. E isso não ocorreu na Argentina, como aconteceu em outros países: pessoas morrendo nas ruas, internadas nos corredores dos hospitais. Isso começou a acontecer em algumas províncias onde o sistema de saúde sempre foi muito precário", aponta.

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A preocupação com o novo cenário na Argentina é o foco de contágios nas províncias do interior do país. Até então, a zona mais crítica se concentrava na área mais populosa, a área metropolitana de Buenos Aires, com 15 milhões de habitantes. Nas províncias, com menor capacidade sanitária, há um agravante. Portanto, as medidas restritivas de circulação foram novamente retomadas especialmente nestas regiões do país.

O presidente pediu compreensão a todos os argentinos para manter as medidas de segurança sanitária durante seu último anúncio. "Estamos submetidos a ataques que, às vezes, nos fazem acreditar que os cuidados e a prevenção não são necessários. Precisamos de governos que construam uma ação conjunta e de cidadãos que entendam o momento que vivemos", concluiu.

Edição: Marina Duarte de Souza