Economia

Contra pressão do setor industrial, Argentina mantém o controle de preços na pandemia

Preços máximos em produtos essenciais e congelamento de tarifas são ajuda essencial para a população na pandemia

Brasil de Fato | Buenos Aires (Argentina) |

Ouça o áudio:

Empresas de alimentos pedem fim dos preços máximos; medida é essencial para proteger a população da especulação sobre produtos da cesta básica - Ronaldo Schemidt/AFP

Quando o isolamento social e obrigatório foi declarado na Argentina, o estado de emergência causou aumento de preços.Uma embalagem pequena de álcool em gel de 60 ml passou a custar AR$ 200 (R$ 14). Mas após a medida Preços Máximos, é possível comprar com quase o mesmo valor, AR$ 250, um álcool gel de 250ml – quase quatro vezes mais.

A Preços Máximos é uma das medidas adotadas na pandemia, para proteger a população da especulação, estabelecendo preços máximos para itens da cesta básica de alimentos e  essenciais. Vale até outubro mas pode ser prorrogada. Os preços de medicamentos, aluguéis, e serviços como telefonia e internet também foram declarados pelo governo como serviços essenciais. 

O lucro dos empresários deve ser razoável, e não de forma que prejudique o nível de vida dos setores sociais mais pobres

A política de congelamento de preços costuma levantar receio com relação a desabastecimento. Apesar de alguns analistas apontarem essa possibilidade a princípio, não houve esse problema. 

"A existência de mercados oligopólicos ou monopólicos poderia dar lugar a comportamentos opostos aos do imaginário neoliberal: a produção do setor poderia incrementar-se como consequência da regulação do seu preço", conclui o economista e pesquisador Andrés Asiain. Isso aconteceria porque uma empresa líder tem a opção de baixar o valor em relação às empresas menores do mesmo setor e continuar lucrando, ainda que com um menor nível de lucros extraordinários.

Leia mais: Fim de clima de diálogo entre governo e oposição na Argentina estabelece novo cenário

Ter esse tipo de políticas é fundamental para a organização de um país, segundo Hector Polino, economista e fundador da ONG Consumidores Livres.

"O lucro dos empresários deve ser razoável, e não de forma que prejudique o nível de vida dos setores sociais mais pobres, e inclusive da classe média, que também sofre as consequências dessas atitudes antissociais e abusivas dos grandes grupos de poder econômico."

"28 grandes empresas, todas de capital estrangeiro, concentram 80% da produção dos produtos da cesta básica de alimentos e artigos de limpeza. Esses grandes grupos econômicos são formadores e 'deformadores' de preços, ao mesmo tempo."


Embate com o setor empresarial

Segundo o Instituto Nacional de Estatística e Censos (Indec), o valor da cesta básica de alimentos subiu 20% este ano. Por outro lado, os índices de salários apontam para uma média de 13% de aumento, uma defasagem importante no acesso a mercadorias do cotidiano.

Atualmente, a cesta básica de alimentos na Argentina é composta por itens como arroz, macarrão, pão, carnes, legumes, café. São mais de 2.300 produtos tabelados com os preços máximos, a princípio referentes aos preços vigentes em março deste ano. Em uma negociação com o setor industrial, as empresas de alimentos puderam fazer ajustes de até 4,5% em julho.

28 grandes empresas, todas de capital estrangeiro, concentram 80% da produção dos produtos da cesta básica.

No final de agosto, poucos antes da última renovação da Preços Máximos, representantes da Coordenação de Indústrias de Produtos Alimentícios (Copal), câmara que agrupa as empresas alimentícias, solicitaram o fim da medida em reunião com o ministro de Desenvolvimento Produtivo Matías Kulfas. Enfatizaram que, por outro lado, apoiam o programa Preços Cuidados, e pediram a manutenção apenas deste programa.

Leia também: Com discurso negacionista e fake news, direita organiza protestos na Argentina

Lançado em 2014, no governo de Cristina Kirchner, o Preços Cuidados é assimilado e visto positivamente pelo mercado por ter gerado aumento de vendas através da política de referência de preços. Conta com a adesão voluntária de atacadistas e varejistas, o programa também é reconhecido e bem-sucedido entre consumidores, que identificam os produtos com preços cuidados por uma etiqueta azul nas prateleiras dos mercados.

Devido à alta inflação que caracteriza a economia Argentina, o Preços Cuidados apresenta uma estabilidade de valor de produtos ao longo do tempo. "Há mais de 15 anos, temos uma inflação de moderada a alta", pontua o economista Sergio Chouza. "Sem uma referência de preço, há uma ruptura do preço relativo. Dificulta estabelecer o valor de um quilo de erva mate em comparação ao pacote de biscoito. E essas referências permitem ordenar os preços na economia." 

Relenbre: Estatização de empresa de cereais abre debate sobre modelo do agronegócio argentino

A alta inflação também afeta o valor de produtos da cesta básica no país. Para Pinolo, o aumento teria sido muito maior sem a estipulação de preços. "Sem o decreto, a situação seria ainda pior. É preciso acentuar a fiscalização e aplicar as normas legais vigentes, como, por exemplo, a lei de observatório de preço", afirma, referindo-se à lei que determina a fiscalização de evolução dos preços, desde a matéria-prima até as prateleiras.

No entanto, os últimos meses foram marcados por uma desaceleração da inflação na Argentina, algo que também é reflexo da pandemia e do congelamento de preços de produtos e serviços. "Em 2019, o país fechou em 53,8% de inflação anual, e, agora, estamos ligeiramente por cima de 40%. É provável que o ano feche em uma zona de 30 a 35% de inflação", analisa Chouza. "Não é uma queda a ser comemorada ou que solucionam o problema da inflação anual, mas é um primeiro passo muito importante para dar continuidade ao próximo ano e continuar desinflando."

Outro fator importante no contexto da economia argentina é o cambiário. Mais controlado este ano, pode apresentar um cenário favorável para uma maior estabilidade da economia do país apos a pandemia.

Edição: Rodrigo Chagas e Rodrigo Durão Coelho