Os Estados Unidos foram protagonistas do golpe de Estado que levou à renúncia de Evo Morales em novembro de 2019. Essa tese é defendida pelo Movimento ao Socialismo (MAS), partido do ex-presidente, e por analistas internacionais como o ex-chanceler brasileiro Celso Amorim.
“O Estado profundo dos EUA age na Bolívia”, disse Amorim ao portal Tutameia, à época do golpe. “Eles não aceitam que a América Latina deixe de ser o seu quintal.”
Donald Trump e a Casa Branca nunca assumiram participação naquele processo, embora tenham se posicionado publicamente contra a reeleição de Morales. O novo pleito está marcado para 18 de outubro.
Na Semana Internacional de Luta Anti-Imperialista, o Brasil de Fato reuniu cinco indícios que conectam os Estados Unidos ao golpe na Bolívia – desde os primórdios até sua consolidação.
1. Camacho-Araújo-EUA
O empresário de extrema direita e católico fundamentalista Luis Fernando Camacho, então presidente do Comitê Cívico de Santa Cruz e hoje candidato à Presidência, é o rosto mais conhecido do golpe boliviano. Porém, suas relações políticas não se limitam às fronteiras do país.
Em maio de 2019, Camacho reuniu-se com Ernesto Araújo, chanceler brasileiro, para pedir apoio à campanha contra a reeleição do então presidente Evo Morales. Araújo é um dos principais interlocutores dos Estados Unidos na América do Sul e é criticado por seu alinhamento irrestrito a Trump.
A proximidade entre os dois, meses antes do golpe, é considerada reveladora da atuação estadunidense no processo de ruptura. Movimento semelhante ocorreu na Venezuela, por exemplo, em fevereiro de 2019, quando Araújo reuniu-se com o opositor Juan Guaidó em meio a tentativas de desestabilização do governo Nicolás Maduro, adversário dos EUA.
“Esse golpe não foi dado por atores sul-americanos. A responsabilidade é dos Estados Unidos e das transnacionais que pretendem se apoderar do lítio boliviano”, disse Alpacino Moreira, candidato a deputado pelo MAS em 2019, em entrevista recente ao Brasil de Fato.
As propostas de Camacho para gestão do lítio respaldam essa tese. O plano de governo dele reconhece a necessidade de investimento público para a reativação da economia pós-coronavírus, mas propõe como carro-chefe a reaproximação com os Estados Unidos, após “14 anos de distanciamento” – em referência aos governos Evo Morales.
Camacho afirma que essa reorientação na política internacional ajudará a Bolívia a encontrar parceiros internacionais para explorar o lítio “em condições vantajosas”.
2. OEA e Grupo de Lima
A hipótese de fraude eleitoral, que impulsionou o golpe de 2019, foi levantada pela Organização dos Estados Americanos (OEA) e descartada, meses depois, por estudos independentes dentro e fora da Bolívia.
O uruguaio Luis Almagro, secretário-geral da OEA desde 2015, tem sido criticado por colaborar com os Estados Unidos na desestabilização de governos não-alinhados e na perseguição de líderes progressistas. Na Venezuela, estaria em jogo o petróleo; na Bolívia, o gás e o lítio. Nos dois casos, a organização endossou imediatamente os questionamentos da Casa Branca e de setores da oposição.
A essa panela de pressão, soma-se o Grupo de Lima, organização apoiada pela OEA que reúne 15 países do continente – 12 dos quais têm governos declaradamente aliados de Trump. Até hoje, todos os posicionamentos do Grupo vem coincidindo com os do Departamento de Estado dos EUA, incluindo o respaldo ao golpe boliviano.
OEA e Grupo de Lima foram as primeiras organizações internacionais a reconhecerem a legitimidade do governo interino.
Em oposição a essa postura, lideranças políticas do continente não-alinhadas aos EUA lançaram, em julho de 2019, o Grupo de Puebla, em que buscam se contrapor ao papel de Almagro e Trump. No caso da Bolívia, a organização denuncia o papel de atores estrangeiros no golpe e se solidariza com os membros do MAS perseguidos no último ano.
3. CLS Strategies
No início de setembro, a presidenta autoproclamada da Bolívia após o golpe, Jeanine Áñez, admitiu que contratou no final de 2019 a CLS Strategies, empresa de lobby acusada pelo Facebook de promover campanhas de notícias falsas para desvirtuar o debate democrático.
O Facebook removeu dezenas de contas falsas de redes sociais ligadas à CLS, com sede em Washington (EUA), que haviam postado conteúdo em apoio a Áñez e contra o governo Maduro, na Venezuela.
Em nota, a presidenta interina disse que a atribuição da CLS era "apoiar a democracia boliviana após eleições fraudulentas e a favor da realização de novas eleições presidenciais". A suposta fraude eleitoral já foi desmentida por institutos independentes, e o contrato com a CLS Strategies continua sendo visto por integrantes do MAS como prova da “má intenção” do governo interino na área comunicacional – uma vez que não há ações oficiais para frear a onda de notícias falsas.
O próprio Morales se pronunciou acusando Áñez de pagar "milhões de dólares em dinheiro público" à CLS. Os valores finais do contrato não foram informados.
4. Tesla
Uma postagem de 42 caracteres na rede social Twitter, no dia 24 de julho de 2020, foi considerada um dos eventos mais reveladores sobre o interesse de empresas transnacionais na Bolívia: “Vamos dar golpe em quem quisermos. Lide com isso.”
O autor da publicação – apagada horas depois – é Elon Musk, CEO da empresa Tesla, fabricante de carros elétricos, com sede nos EUA. A Bolívia possui a maior reserva mundial de lítio, metal alcalino usado na produção de pilhas e baterias.
A ameaça de Musk foi uma resposta a uma postagem sobre seu interesse em impedir que Evo Morales continuasse no poder.
Um dos pilares do governo Morales foi a nacionalização do petróleo, do gás e dos recursos minerais do país, que permitiu um crescimento econômico recorde e a redução da extrema pobreza.
Candidato no pleito de outubro e líder nas pesquisas de intenção de voto, Luis Arce (MAS), conduziu esse processo à frente do Ministério de Economia e Finanças ao longo de 12 anos. A proposta baseou-se na transferência de empresas privadas para o controle do Estado e, principalmente, na renegociação de contratos de transnacionais, que tiveram que pagar um imposto adicional de 32% para exploração dos recursos minerais.
5. Viagem suspeita
O ministro de Governo de Jeanine Áñez, Arturo Murillo, visitou Washington no dia 28 de setembro. O motivo da viagem, informado oficialmente, era a busca de apoio financeiro para o plano de reativação econômica da Bolívia pós-coronavírus.
Além de se reunir com o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e com o Departamento de Estado, Murillo foi recebido por Almagro, líder da OEA. Jornais bolivianos, como El Deber, La Razón e Página Siete, informaram que o motivo real da visita era evitar que o MAS chegue novamente ao poder alegando fraude eleitoral.
Almagro endossou essa versão nas redes sociais e confirmou que a OEA atuará novamente como observadora nas eleições bolivianas. Segundo o MAS, o organização não deveria ser autorizada a trabalhar no pleito, já que “atrapalhou” as eleições de 2019 – ao alegar uma fraude que não ocorreu.
Murillo negou as acusações e informou que está preocupado com a “preservação da democracia” no país.
Na última semana, o jornal britânico The Morning Star teve acesso a documentos que ligaram um sinal de alerta sobre a possibilidade de um novo golpe. Segundo a reportagem, diante da provável vitória de Arce em 1º turno, grupos de extrema direita estariam planejando atentados terroristas, incluindo bombas em hotéis, para em seguida responsabilizar o MAS e anular novamente as eleições.
Edição: Rogério Jordão