A menos de um mês das eleições presidenciais, a Bolívia foi surpreendida por uma denúncia que escancara o uso político da polícia e da justiça após o golpe de 2019.
A capitã Silvia Sandoval Peredo, da Força Especial de Luta Contra o Crime, elaborou um dossiê com 11 casos de irregularidade, manipulação e perseguição política orquestrados pelo comandante da unidade, coronel Iván Rojas, contra personagens da esquerda boliviana e ex-funcionários do governo de Evo Morales.
Segundo o dossiê, divulgado nesta quarta-feira (23), Rojas atuava de maneira ilegal e era acobertado por fiscais nos departamentos, equivalentes a estados no Brasil.
Em três relatórios enviados em julho e agosto a seus superiores, a capitã Sandoval Peredo detalha como Rojas cometeu crimes de corrupção, abuso e uso indevido de influência. A policial também assegura que, depois de formalizar as denúncias à corporação, passou a ser perseguida e ameaçada de morte.
Confira em detalhes os três casos mais importantes descritos no dossiê:
Caso Carlos Romero
Uma das denúncias aponta que Rojas ordenou a busca e apreensão na residência do ex-ministro de Governo Carlos Romero, em janeiro deste ano, sem ordem judicial e sem a presença de um procurador. Além disso, o coronel teria ordenado a detenção da advogada de Romero, Mónica Ramírez, sem respeito ao devido processo legal.
Romero ficou preso por seis meses, sem passar por julgamento. A defesa dele conseguiu o direito de liberdade provisória em junho deste ano.
Policiais de nível hierárquico inferior chegaram a elaborar relatórios, informando superiores sobre o procedimento. Em seguida, foram transferidos da capital La Paz para outra unidade, no departamento de Pando, norte do país.
Caso Embaixada México
Rojas foi o comandante da operação que resultou na detenção de Félix Cesar Navarro, ex-ministro de Mineração, e Pedro Damián Dorado, ex-vice ministro de Desenvolvimento Rural, que haviam obtido salvo-conduto para deixar o país.
Depois de sair da residência oficial da Embaixada do México, no dia 31 de janeiro, Navarro e Dorado foram detidos no aeroporto de El Alto, a 15 km de La Paz, em uma ação que também não contava com respaldo judicial.
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A capitã Sandoval denuncia que, igualmente, os policiais que se negaram a cumprir com as ordens de Rojas foram transferidos a outras unidades.
Depois das denúncias internacionais e da intervenção de Andrés Manuel López Obrador, presidente do México, os dois ex-funcionários do governo Evo Morales pediram asilo e foram acolhidos em solo mexicano, no dia 2 de fevereiro.
El exministro César Navarro y el exviceministro Pedro Damián Dorado, contaban con salvoconductos otorgados ayer. Tras 82 días asilados en la Embajada de #México en #Bolivia. El gobierno de facto mató 36 hermanos y sigue encarcelando inocentes. #DictaduraEnBolivia pic.twitter.com/diuLHTElt3
— Evo Morales Ayma (@evoespueblo) February 1, 2020
Abordagem contra Luis Arce
Também no mês de janeiro, logo após ser nomeado como candidato à presidência pelo Movimento Ao Socialismo (MAS) durante o congresso realizado na Argentina, o ex-ministro de Economia e Finanças Luis Arce foi notificado pela polícia, ainda no aeroporto de El Alto, por suposto crime de corrupção. Arce foi acusado de desviar dinheiro público do Fundo para o Desenvolvimento dos Povos Indígenas enquanto era ministro.
A operação também foi comandada por Rojas, sem conhecimento prévio dos investigadores encarregados do caso. Para entregar a notificação, o coronel recorreu a policiais da segurança do próprio aeroporto, que abordaram Arce antes mesmo de registrar sua entrada ao país.
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Na ocasião, Arce se dirigiu à sede do Ministério Público na capital para depor sobre o caso. "Sou um homem transparente. Vim declarar porque não tenho nada a esconder, não sou corrupto, não sou ladrão. Minha equipe de advogados e a própria procuradora notaram as falhas no procedimento de notificação. Trata-se de um ato eminentemente político contra nossa candidatura", disse.
A defesa do candidato do MAS afirmou que não havia recebido as acusações formais do processo quando Arce foi convocado a depor. O ex-ministro de Economia e Finanças voltou a ser chamado a depor em fevereiro de 2020, no entanto a ação continua tramitando no Ministério Público de La Paz, sob comando do fiscal Marco Antonio Rodríguez.
Entre os 11 casos de irregularidades, a capitã Silvia Sandoval Peredo ainda revelou que o coronel Rojas utilizou o cargo para encobrir investigações contra Marcelo Hurtado, um dos diretores da cadeia televisiva ATB e ex-chefe da esposa de Rojas, Carla Rocio de La Torre.
A chefe da Força Especial de Luta Contra o Crime pede proteção judicial depois de realizar as denúncias dentro da corporação e à imprensa. Ela denuncia que sua residência é vigiada por desconhecidos e que já sofreu tentativas de atentado. Em uma delas, a policial percebeu que teve os freios da sua motocicleta quebrados, ao finalizar uma jornada de trabalho, o que foi interpretado como uma sabotagem.
A situação foi relatada em um memorando entregue ao ministro de Governo de Jeanine Áñez, Arturo Murillo, que nunca respondeu o ofício.
Outros casos
Os demais casos descritos no dossiê também envolvem corrupção, uso indevido de influência, assédio moral, descumprimento de deveres e violação ao devido processo legal. Em todos os 11, o coronel Rojas estaria implicado, atuando para prender ou violar direitos de ex-integrantes do MAS ou para encobrir familiares e amigos.
A reportagem do Brasil de Fato entrou em contato com a Força Especial de Luta Contra o Crime para ouvir a versão do coronel Iván Rojas sobre os fatos, mas não obteve retorno.
Edição: Luiza Mançano