A disputa pelo lítio foi o principal motivo do golpe que resultou na renúncia do então presidente boliviano Evo Morales, em novembro de 2019. Essa é a avaliação do Movimento ao Socialismo (MAS), que governou o país entre 2005 e 2019, e de analistas internacionais entrevistados pelo Brasil de Fato nos últimos meses.
Lítio é um metal alcalino usado para fabricação de pilhas e baterias, cujas maiores reservas mundiais estão na Bolívia – cerca de um terço de todo lítio do planeta. Um dos pilares do governo Morales foi a nacionalização do petróleo, do gás e dos recursos minerais do país, o que permitiu um crescimento econômico recorde e a redução da extrema pobreza em quase 20 pontos percentuais.
Candidato no pleito de outubro e líder nas pesquisas de intenção de voto, Luis Arce (MAS), conduziu esse processo à frente do Ministério de Economia e Finanças ao longo de 12 anos. A proposta baseou-se na transferência de empresas privadas para o controle do Estado e, principalmente, na renegociação de contratos de transnacionais, que tiveram que pagar um imposto adicional de 32% para exploração dos recursos minerais.
“A nacionalização foi fundamental porque deu solvência à carteira do Estado. Se não fosse aplicada a nacionalização, o Tesouro estaria 'de bolsos vazios', impedido de aplicar qualquer tipo de política, porque elas dependem de recursos econômicos”, explicou o diretor do Instituto de Pesquisas Econômicas da Universidad Mayor de San Andrés (UMSA), Marcelo Montenegro, em entrevista ao Brasil de Fato.
O lítio é um dos assuntos mais citados nas campanhas virtuais dos candidatos à presidência, o que evidencia uma disputa de projeto político e econômico cada vez mais acirrada. A pandemia do novo coronavírus, com impactos sobre a economia mundial, reforçou a importância do debate sobre mudanças na matriz energética e estratégias para retomada do crescimento do Produto Interno Bruto (PIB).
O tema ganhou ainda mais centralidade a partir de 25 de julho de 2020. Foi quando Elon Musk, CEO da Tesla, empresa estadunidense que fabrica carros elétricos, respondeu de maneira irônica e agressiva a um comentário nas redes sociais sobre sua participação na anulação das eleições de 2019 na Bolívia: “Vamos dar golpe em quem quisermos. Lide com isso”.
Para Arce, a declaração de Musk é reveladora sobre os motivos do golpe e os interesses estrangeiros que estão em jogo nas novas eleições. Os demais presidenciáveis, que haviam apoiado a renúncia de Morales no ano anterior, minimizam o posicionamento do CEO da Tesla.
Entenda as propostas dos principais candidatos bolivianos sobre a gestão do lítio:
Luis Arce (MAS-IPSP)
O candidato do MAS defende que o Estado retome acordos com empresas estrangeiras – alemãs e chinesas – para produção de baterias de lítio em território boliviano, desde que esteja assegurado o respeito à soberania nacional e o compromisso com a sustentabilidade. Ou seja, o lítio continuaria estatal, mas a industrialização seria feita em parceria com a iniciativa privada.
Em 2019, a Embaixada da China na Bolívia chegou a anunciar que o país se tornaria o maior produtor de veículos elétricos do mundo, após fechar um acordo de quase R$ 13 bilhões para industrialização do lítio boliviano. A negociação com as empresas TBEA Group e China Machinery Engineering teve repercussão negativa entre as concorrentes do setor nos Estados Unidos, que ficaram de fora dessa parceria.
“As empresas que queiram industrializar nosso lítio serão bem-vindas, desde que empregando e produzindo na Bolívia. Nós queremos produzir nossas baterias bolivianas para podermos exportá-las, obtendo mais uma alternativa para a economia boliviana”, explicou Arce, em entrevista à veículos de imprensa brasileiros.
Carlos Mesa (Comunidad Ciudanana/Comunidade Cidadã)
Já na campanha do ano passado, o programa do ex-presidente Mesa – que pertence à direita tradicional e apoiou o golpe de 2019 – inclui um capítulo especial sobre a gestão do lítio. O metal é descrito no texto como a “última fronteira extrativista e a primeira fronteira verde da história econômica da Bolívia”.
Em linhas gerais, o candidato propõe a inserção da Bolívia na cadeia global de valor do lítio, o que significa submeter o metal às flutuações do mercado financeiro – na Bolsa de Xangai, na China, e na Bolsa de Metais de Londres, no Reino Unido.
Para o economista Abraham Pérez, que analisou o capítulo do lítio no programa de Mesa em 2019, as propostas representam uma “privatização disfarçada”.
Luis Fernando Camacho (Creemos/Acreditamos)
Ex-líder do Comitê Cívico de Santa Cruz e um dos agentes do golpe de 2019, Camacho também é evasivo nas propostas sobre a gestão do lítio. O candidato reconhece a necessidade de investimento público para reativação da economia pós-coronavírus, mas propõe como carro-chefe da economia a reaproximação com os Estados Unidos, após “14 anos de distanciamento” – em referência ao período do governo Morales.
Camacho afirma que essa reorientação na política internacional ajudará a Bolívia a encontrar parceiros internacionais para explorar o lítio “em condições vantajosas”.
Antes e depois de Áñez
Desde que assumiu a presidência interinamente, após o golpe, a ex-senadora Jeanine Áñez freou as negociações com Alemanha e China para industrialização do lítio, mas não propôs soluções alternativas. Ela pretendia ser candidata nas novas eleições bolivianas, mas desistiu “para não dividir a direita” – sua chapa tinha cerca de 10% das intenções de voto e aparecia em 4º lugar.
Na contramão da tendência de mudança na matriz energética, em que o lítio seria protagonista, a campanha de Áñez tratava o tema de maneira vaga. “O desafio é superar a dependência do extrativismo e diversificar a economia, mudando o papel do Estado”, disse o então candidato a vice, o empresário Samuel Doria Medina, derrotado três vezes consecutivas por Evo Morales nas urnas.
O programa de Áñez citava ainda a necessidade de se ampliarem os incentivos fiscais para estimular investimentos privados nacionais e estrangeiros. A candidata mencionou em entrevistas à imprensa local que pretendia “melhorar” o projeto de exploração industrial do lítio no sul da Bolívia, sem especificar quais mudanças seriam necessárias.
A avaliação do MAS é de que o objetivo da direita boliviana ao suspender parcerias com empresas alemãs e chinesas é entregar o lítio "de bandeja" para os Estados Unidos, consolidando uma reorientação na política externa do país.
Assim como Jeanine Áñez, os candidatos Camacho e Mesa não descartam táticas como redução de impostos para atrair investimentos externos. Essa estratégia é o oposto do programa do MAS, que pretende manter o imposto adicional de 32% sobre os hidrocarbonetos. Na avaliação de Arce, o interesse estrangeiro sobre os minerais bolivianos é tão grande que qualquer isenção seria desnecessária e representaria uma afronta à soberania nacional.
Edição: Rodrigo Durão Coelho