Doenças como obesidade, hipertensão, diabetes e câncer já estão presentes na maioria dos territórios indígenas do Brasil. O desafio é, além de evitar o avanço dessas doenças, também tratar seus enfermos. Esta é a última publicação de uma série de três reportagens sobre os impactos da comida da cidade em povos indígenas no Brasil.
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Vanessa Haquim é nutricionista e trabalha há 13 anos no Projeto Xingu, um programa de extensão da Escola Paulista de Medicina /Universidade Federal de São Paulo que trabalha com populações indígenas desde 1965, com foco do Território Indígena do Xingu. Segundo ela o primeiro passo para para garantir a saúde indígena é deixar a ilusão de que alimentos processados, nocivos à saúde, não serão mais consumidos e tratar a questão a partir daí.
“A introdução dos alimentos já é uma realidade em muitos territórios, não adianta falar para não consumir. É necessário dialogar com as comunidades, escutar o que eles têm a dizer. Buscar compreender o que eles entendem por saúde, por alimentação ‘saudável’, quais as regras de consumo dos alimentos tradicionais, as dificuldades que enfrentam no território onde estão, para obter uma alimentação boa, o que eles sabem sobre os produtos e alimentos da cidade. Antes de tudo é preciso escutar”, explica a pesquisadora.
A comida da cidade também tem chegado às comunidades como distribuição de cestas básicas para famílias vulneráveis. Neste período de pandemia, por exemplo, a Fundação Nacional do Índio (Funai), através de uma articulação com o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) e a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), pretende distribuir, ao todo, 308 mil cestas de alimentos à famílias indígenas de diferentes regiões do país. A ação deve beneficiar aproximadamente 154 mil famílias em mais de 3 mil comunidades.
Como a FUNAI, muitas organizações, de forma emergencial, distribuem os alimentos da cidade para matar a fome, mas sem que haja qualquer preocupação com quais tipos de alimentos estão sendo entregues e se eles fazem parte ou não da dieta indígena. Para a pesquisadora da UNIFESP, a longo prazo essa alimentação é inadequada para essa população. O ideal seria oferecer uma dieta em que eles pudessem preparar seus próprios alimentos, com base na sua cultura tradicional.
Um outro ponto importante a se levar em consideração é como os profissionais de saúde estão atuando nessas regiões. “As equipes de saúde que trabalham com esses povos precisam estar atentas para essas mudanças, entender como elas podem ser prejudiciais e passar as informações corretas para as comunidades através de atividades educativas para a prevenção desse tipo de doença e promoção de saúde, como as oficinas de culinária por exemplo. O ideal é construir estratégias coletivas de estímulo à alimentação tradicional associadas a estratégias de enfrentamento destes novos agravos”, explica Haquim.
Oficina de Culinária na aldeia Capivara, no baixo Xingu, da Terra Indígena do Xingu, da etnia Kawaiweté (Kaiabi), sobre os cuidados com uso do sal, açucar, óleo e café / Helio Carlos Mello / Acervo Projeto Xingu-UNIFESP
O acesso à saúde de qualidade pode variar de região para região. “Na atenção primária, é possível trabalhar sobre muitos aspectos no enfrentamento desses problemas. Como já falado anteriormente, as equipes de saúde que atuam diretamente nos territórios, se capacitados, podem trabalhar com muitas ações educativas juntos as comunidades. A participação dos Agentes Indígenas de Saúde nas equipes de saúde em área e o protagonismo das próprias comunidades podem ser a chave para o enfrentamento destes problemas”, argumenta.
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Haquim explica que, ao mesmo tempo, é de suma importância garantir materiais, insumos e medicamentos necessários para o diagnóstico, acompanhamento e tratamento, caso alguma dessas doenças seja identificada. “Pelo que temos observado, muitos territórios ainda não contam com esse suporte. Além disso, é preciso articular uma rede de atenção especializada, desde a porta de entrada até os serviços de saúde do SUS regional, para a garantia da realização dos exames específicos destas condições e caso alguma pessoa necessite ser encaminhada por alguma complicação.”
Há diversas políticas já existentes que podem minimizar os problemas de saúde relacionados com a alimentação nas comunidades indígenas. Políticas públicas como o Bolsa Família, merenda escolar, acesso aos alimentos, assistência social são muito importantes essa população. Entretanto, devem ser adequadas para a realidade dos diferentes locais para que possam contribuir de fato para a melhoria da alimentação desses povos e não transformarem-se em mais um vetor de doenças e de insegurança alimentar. Segundo a pesquisadora é necessário investir em políticas diferenciadas, que levem em consideração cada realidade e especificidade de cada povo.
“Os povos indígenas têm enfrentado - desde sempre - mas especialmente nos últimos anos,- um ataque direto ao seu modo de viver, pensar e existir. Mas eles nos dão uma lição sobre resistência e por isso seguimos. Nessa luta é preciso apoiá-los em relação à garantia dos direitos básicos e principalmente à regularização e demarcação das terras indígenas para que tenham garantia de um território suficiente para sua segurança e soberania alimentar”, pontua.
“É necessário apoiar as ações de caráter intersetorial, incentivando o desenvolvimento de estratégias e projetos complementares de subsistência com a participação efetiva desses povos nas tomadas de decisões. É preciso valorizar a cultura alimentar indígena entendendo que ela faz parte das nossas raízes e faz parte da nossa história enquanto nação”, completa.
Edição: Rodrigo Durão Coelho