Sal, óleo, açúcar, café. Você já parou para pensar em como os alimentos da cidade podem ter impactos da saúde dos povos indígenas? Um estudo da equipe do Projeto Xingu, um programa de extensão da Escola Paulista de Medicina /Universidade Federal de São Paulo, está em andamento, já em fase de análises, justamente sobre esse tema. O projeto chamado ‘Novos problemas de saúde: avaliação do perfil nutricional e metabólico dos indígenas do Parque Indígena do Xingu’ levantou dados de 1600 participantes com mais de 18 anos.
Esta é a segunda de uma série de três reportagens sobre os impactos da comida da cidade em povos indígenas no Brasil. Há muitas explicações para que o acesso aos produtos industrializados tenha aumentado tanto nos últimos anos.
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Vanessa Haquim, nutricionista que trabalha há 13 anos no Projeto Xingu, destaca que o desmatamento e a construção de grandes obras, a contaminação pelo uso de agrotóxicos e a mineração no entorno dos territórios, a monetarização da economia com o aumento dos assalariados, a distribuição de benefícios nas aldeias e a falta de acesso e opção de alimentos saudáveis estão entre as principais razões. Ela pontua também que os mercados que ficam próximos aos territórios indígenas, em geral, não têm boas opções de alimentos saudáveis como frutas, legumes, verduras e, quando possuem, o valor é muito alto.
A pesquisa desenvolvida pela UNIFESP aconteceu durante três anos. Inicialmente foram realizadas visitas e consultas às lideranças sobre os novos problemas de saúde que estavam ocorrendo em suas comunidades e como associavam essas novas doenças às mudanças no modo de viver e se alimentar. “Em todas as aldeias as lideranças sinalizaram preocupações com as novas doenças, com as mudanças climáticas que têm atrapalhado o plantio das roças e a sua segurança alimentar e com o consumo aumentado de alimentos industrializados” explica Haquim.
“Durante esse período fizemos a avaliação nutricional dos indígenas e coletamos exames como glicemia, perfil lipídico e aferição da pressão arterial, por meio de aparelhos portáteis, cujos resultados ficavam prontos na mesma hora. Com a possibilidade de ter os resultados dos exames no mesmo momento da pesquisa, conseguimos apresentar para cada comunidade a situação em que se encontravam naquele momento. As conversas eram mediadas pelos Agentes Indígenas de Saúde (AIS) que apresentavam os resultados, quantos casos de obesidade, diabetes ou hipertensão, e explicavam sobre cada alteração, cada doença e o porquê elas aconteciam”, conta.
A apresentação para comunidade era feita através de projeção de imagens, gráficos e informações traduzidas para cada língua indígena. Fazia parte dessas conversas a apresentação dos alimentos “perigosos” e os alimentos não-indígenas considerados bons para a saúde do ponto de vista da biomedicina. Além da pesquisa sobre a situação nutricional e dos exames, o estudo procurou aprofundar também os conhecimentos sobre as mudanças no modo de viver, trabalhar e comer dos indígenas, por meio de rodas de conversas e entrevistas.
Haquim explica que o estudo possibilitou também levar informações sobre o preparo da comida. “Outra parte bem importante do trabalho foi a possibilidade da realização de oficinas de culinária junto com eles. As oficinas foram divididas em dois momentos, uma com o intuito de preparar alimentos “da cidade” ou não tradicionais e a outra com os alimentos tradicionais indígenas, realizadas pelas indígenas de cada comunidade."
"A primeira teve como objetivo apresentar o uso e quantidade correta dos ingredientes culinários como sal, açúcar e óleo, além de apresentar as variedades de alimentos e possíveis combinações entre os alimentos. Já as oficinas de alimentos tradicionais tiveram como objetivo a valorização da cultura alimentar indígena."
"Além do ato de cozinhar, as oficinas proporcionaram que cada comunidade refletisse e problematizasse sobre as mudanças que estão passando, além das mudanças ambientais e climáticas que estão influenciando a obtenção de alimentos”.
Segundo relatos dos próprios indígenas e de trabalhadores da saúde, após as oficinas de alimentos “da cidade”, as comunidades ficaram mais atentas para o uso dos ingredientes como sal, açúcar, óleo, no uso cotidiano, na merenda e quando fazem refeições nas cidades próximas. Por sua vez, as oficinas culinárias de alimentos tradicionais indígenas proporcionaram a revitalização de técnicas, receitas e regras tradicionais de consumo.
“Acredito que existam dois grupos de alimentos prejudiciais para a população indígena e para todas as pessoas: um grupo das preparações culinárias com grandes quantidades de sal, óleo e açúcar, e o outro dos “alimentos” ultraprocessados. Dependendo do território, um pode ser mais presente que o outro ou até mesmo coexistirem de maneira semelhante no mesmo local.
"Os produtos ultraprocessados (por que é difícil chamá-los de alimentos), como refrigerantes, sucos artificiais, bolachas, salgadinhos, macarrão instantâneo, temperos prontos e embutidos como mortadela, salsichas, além de conter grandes quantidades de sal, açúcar, óleo ou gordura, também são compostos por aditivos alimentares como corantes, conservantes, adoçantes, estabilizantes, entre outros”, pontua Haquim.
A grande quantidade de ingredientes, associados aos aditivos alimentares, tornam os produtos ultraprocessados uma ameaça à saúde de todos, explica a pesquisadora. “No entanto, é preciso tomar cuidado na preparação mesmo do alimento, no cotidiano, com a quantidade de sal e óleo colocados no arroz, feijão, macarrão e no açúcar do café, alimentos muito presentes nos territórios indígenas."
"Tivemos a oportunidade de observar em algumas comunidades a mistura de ingredientes culinários nas preparações tradicionais, como o mingau de mandioca com açúcar, o beiju /tapioca com sal, o peixe frito em óleo, etc. Não são ingredientes proibidos de serem usados e consumidos, mas é preciso estar atento às quantidades a serem colocadas em cada preparação. Já o consumo de alimentos ultraprocessados devem ser desestimulados”.
Jefferson Ferreira, presidente da Associação dos Povos Indígenas do Estado de Roraima (APIRR), cita que os indígenas desconheciam problemas de saúde relacionados com diabetes, colesterol, glicose, pressão alta, entre outras doenças. “Até o próprio câncer surgiu depois da chegada dessas comidas, porque, por exemplo, hoje o índio come muito frango, e um frango que tem muito hormônio, né? Isso tem causado muitos tumores”.
A pesquisa explica que “é sabido que o consumo elevado desses alimentos podem levar, juntamente com outros fatores, ao surgimento de doenças como hipertensão, diabetes, dislipidemias e obesidade. O surgimento delas é origem multicausal, mas a alimentação tem grande participação nesse cenário”.
Outro estudo
Em 1986, pesquisadores da Escola Paulista de Medicina participaram de um estudo internacional multicêntrico denominado INTERSALT. Nele, uma amostra de 10 etnias do Parque Indígena do Xingu foi estudada e não houve detecção de nenhum caso de excesso de peso, hipertensão arterial ou diabetes mellitus. Ou seja, foi possível marcar uma época, um ponto zero, em que não existiam casos de doenças crônicas nesse território. Desde então, alguns estudos vêm mostrando um número crescente de casos em diferentes povos.
“Quando analisamos o perfil epidemiológico dos povos indígenas de alguns países, percebemos que a presença dessas doenças pode ser maior do que a encontrada entre não-indígenas. Ou seja, esses achados indicam uma maior vulnerabilidade desses povos frente às mudanças do modo de viver."
"Ainda existem estudos apontando que os indígenas apresentam um “genótipo econômico” que favoreceria o surgimento mais acelerado das doenças crônicas e dislipidemias entre eles, o que explicaria a maior vulnerabilidade para essas doenças. Se para as populações não indígenas estes problemas são preocupantes, para os grupos indígenas podem ser ainda mais graves”, completa Haquim.
Edição: Rodrigo Durão Coelho